Salvo engano, é a primeira vez que tasco assim, já no título, um elogio tão extremo para um disco. Tomei cuidado para começar a escrever sobre “Anatema”. Recebi o álbum – virtual e fisicamente – há algumas semanas. Ouvi umas 15 vezes, pelo menos. Tarefa absolutamente suculenta, ao contrário de 99% dos casos em que um disco começa a ficar insuportável na terceira audição. Primeiro sinal. O tempo e a atenção que dediquei serviram para comprovar que não se tratava de deslumbramento inicial. De impacto soporífero. De que estava diante, realmente, de uma obra muito acima da média nacional (e também) mundial no post-rock ou fora dele.
Da forma como foi criado – com parcimônia, cuidado e dedicação extrema a cada detalhe, seja musical, conceitual e gráfico. A banda se preocupou em criar um legítimo ambiente. Uma identidade. Longe da maneira caricata e rasa como os discos ditos “conceituais” são tratados hoje em dia. As ilustrações e o projeto gráfico de João Ruas são, provavelmente, o de melhor realização no país em muito tempo. Além da capa – em rascunho ali no topo – cada música (“Reverso”, “Incendiários”, “Chromo”, “Huo Yao”, “Flagelo”, “Anatema”) tem sua própria arte. E não qualquer arte, diga-se. A premissa de “músicas para imagens” expressa de forma declarada pelo grupo.
A beleza e a melancolia inerente na maioria dos discos de post-rock está presente aqui de forma avassaladora. “A revolta que a espada não pode ferir, e o fogo não pode queimar. Um fogo devora outro fogo…uma dor de angústia cura-se com outra”. Diz a inscrição na parte interna do álbum. Conseguir extrair o melhor da melancolia, transformar isso em arte bela e única, é coisa para poucos. O Labirinto conseguiu. E sem cair na maioria dos vícios das bandas do gênero.
Se você ouvir 30 bandas de post-rock diferentes num mesmo dia – já fiz isso anos atrás – 90% delas soarão ridiculamente iguais. As mesmas estruturas, mesmos timbres, harmonias, mesmo ritmo de “explosão” e “calmaria”, etc. Tudo gravado de forma semelhante, sem punch, sem alma. Tudo soa plástico e gratuito demais. Aqui não. Claro que o Labirinto não inventou a roda. Há traços inegáveis de algumas bandas, mas as melhores. Há construções familiares, inevitavelmente. E de todas as bandas que os influenciam a melhor delas aparece forte: difícil não pensar no Godspeed You! Black Emperor.
httpv://www.youtube.com/watch?v=ADAzRzs_0b0&feature=player_embedded
Mesmo com toda banalização e associação superficial que uma comparação sempre produz, podemos dizer que o Labirinto é o nosso GY!BE. “Reverso” é um belo começo – e o paradoxo se inicia aí. Ali já está dada a polpa do que virá. As intenções. O clima. É tensa e excruciante. O violoncelo e a cítara dão o tom. E embora ela se perca lá pro final, mantém o nível. Observação que vale para outras faixas do disco: as repetições cíclicas típicas do post-rock incomodam às vezes, além de algumas passagens que caem em certas armadilhas e vícios. Mas tudo perdoável pelo ótimo nível geral.
“Incendiários”, “Chromo” e “Huo Yao” são peças únicas ao mesmo tempo que fazem ponte orgânica e fluída entre si. Mérito da banda que conseguiu reunir tantos elementos: além de guitarra, baixo e bateria, efeitos, sintetizadores, violoncelo, cítara, banjo, violino e a profusão de canais, chegando a 150 para as guitarras. A produção, diga-se, feita pela própria banda, foi lapidada ao extremo por Greg Norman (Russian Circles, Pelican) no Electrical Audio Studios (de Steve Albini, produtor de Pixies, Nirvana e outras frentes). Com o investimento na produção, o resultado é flagrantemente acima da média brasileira e no mínimo no mesmo nível das melhores obras internacionais do gênero.
Com tudo isso, arrisco dizer que a música do Labirinto não é complexa, mas consegue encontrar o equilíbrio entre a simplicidade e o hermético. O que importa aqui é a criação do ambiente de cada composição e sua capacidade de integrar a grande suíte que na verdade são as 6 faixas. As melhores heranças do progressivo reunidas numa obra coesa, com personalidade, longe de mera imitação, num pacote fantástico. Ao vivo tudo deve ficar ainda melhor.
Os 25 minutos finais de “Flagelo” (ecos de “Meddle” na minha cabeça floydiana) e “Anatema” são provavelmente a coisa mais bela que nossa música instrumental “alternativa” criou nos últimos anos. Num país com tanta tradição e tanta gente absurdamente boa compondo peças instrumentais de variados gêneros constantemente, o Labirinto é capaz de ganhar destaque até entre eles.
Um dos melhores trabalhos do ano, que dificilmente será batido. “Anatema” tem tudo para tornar-se, com justiça, um marco do post-rock brasileiro.