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Apadrinhado por Siba, Mestre Anderson Miguel mostra a que veio em “Sonorosa”

Que grata surpresa é o trabalho de Mestre Anderson Miguel, 22 anos, desde que nasceu talhado pelo Maracatu de Baque Solto da Zona da Mata de Pernambuco. Apadrinhado e produzido por Siba, ele mesmo talvez o que melhor levou o bastão do maracatu para um público mais amplo fora do Nordeste nos últimos 15 anos, Anderson Miguel mostra, de fato, que a música está no sangue, nos ancestrais, no berço e no apito.  

Desde os 8 anos preparado para o ofício, sua apresentação nos informa que  ele “assumiu o posto de contra-mestre dos veteranos Mestre Aderito, seu pai, e Mestre Zé Flor, que lhe transmitiram o conhecimento sobre a prática centenária do maracatu — tradição popular de origem afro-indígena elaborada por trabalhadores canavieiros do fim do século XIX. Hoje Anderson é cirandeiro respeitado e também mestre do Cambinda Brasileira, o grupo de Baque Solto mais antigo em atividade, com 100 anos de história.”

É inevitável a tradição que exala “Sonorosa”, em que a voz estrepitosa de Anderson Miguel acompanha o batuque sincopado das composições, a harmonia caudalosa da guitarra e dos metais, a percussão em duelo com o óbvio, o estrondo melodioso de “É Hora”, que fecha o trabalho após os 16 minutos da faixa-título, testamento de coragem bem executada. É inevitável a tradição, e não poderia ser diferente, mas Mestre Anderson não se prende somente a ela, seja nos caminhos que escolhe, seja nas participações – a onipresente e sempre bem-vinda Juçara Marçal e o competente Jorge Du Peixe na ótima “No Hoje e na Hora” – que tem o objetivo claro de aproximar ainda mais o público dele de um Metá Metá, um Nação Zumbi, um Baianasystem e por aí afora, mas que também funciona musicalmente. E muito.

A produção de Siba é quentíssima, quase fumegante, deixando as camadas respirarem, cada instrumento ocupar seu lugar, cada seção imprimir sua marca, deixando a voz de Mestre Anderson nem mais nem em menos evidência do que o necessário – e essa é uma qualidade rara em um produtor, seja aqui e lá fora, em qualquer estilo. Não surpreende, já que estamos falando de um compositor, arranjador, produtor e pesquisador por trás de obras como “No Baque Solto Somente”, “Fuloresta do Samba”, “Toda Vez Que Eu Dou Um Passo O Mundo Sai do Lugar” e “Avante”. 

É acertadíssima a parceria e a tarefa assumida por Siba de apresentar uma nova geração de mestres do maracatu ao Brasil. Em matéria para o Jornal do Comércio ainda em 2017, Siba disse: “meu primeiro objetivo na produção é fazer que o disco tenha um som bem captado, grande e bonito, como o som é quando a gente vai ouvir ao vivo. Vou chamar outras pessoas para participar, pessoas que vibram na mesma sintonia da música de rua mas são de universos que normalmente não se tocam, para quebrar essa ideia de que a música tradicional é arcaica. São encontros que não são tradicionalmente da linguagem do maracatu e ciranda, mas a ideia é promover um diálogo. O maracatu tem uma história muito bonita. Essas interferências têm que respeitar esse território que é ocupado”.

O resultado indica que a proposta foi alcançada com enorme sucesso. Quem gosta do riscado tem tudo para se esbaldar com “Sonorosa”, com destaque para “O Cirandeiro”, “Princesa” e “O Desprezo Machuca o Coração”, além das duas já citadas. Quem gosta da proposta tem em Mestre Anderson Miguel um artista para ficar atento, um disco que cativa diversas audições e que sem dúvida já figura entre os melhores do ano no Brasil. 

Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Reviews de Cds