O Porão do Rock é um sobrevivente. Prestes a completar a 20ª edição, é um dos festivais independentes de maior longevidade no Brasil. Um desses festivais que cresceu mais que o esperado e que, entre altos e baixos, teve que diminuir o seu gigantismo. Com a verba menor, o PDR viu-se obrigado a confinar sua programação em um dia (já teve três dias de shows em 2005 e 2006) e limou os shows de artistas estrangeiros que já visitaram o Porão, como Muse, Kyuss, Eagles Of Death Metal, Helmet, Gaz Coombes, Mark Lanegan, Mudhoney, Red Fang, Trivium e vários outros.
Como sobrevivente, o Porão consolidou sua estrutura em três palcos, revezando dois palcos principais e deixando um exclusivo para o som pesado, majoritariamente metal e hardcore. Mesmo formato da edição 2016 que, se não chegou a “inovar”, esteve longe de fazer feio. Na verdade pode-se dizer que talvez esta tenha sido a melhor escalação nacional do Porão em anos recentes e que a cena de Brasília, que tem no festival uma enorme referência, esteve bem representada com nomes consolidados e novatos com boa cancha.
Se dá para acusar o Porão de “falta de imaginação”, parece-me que o evento está satisfeito com o seu papel de sobrevivente na cena e que assimilou que não cabe ao PDR “lançar tendências”. Curadoria acomodada, sim, mas que capitulou que o mais seguro a se fazer é apostar em atrações conhecidas e garantir o público jovem que sempre compôs boa parte dos seus presentes.
Eu, que venho criticando – com justiça – o atraso excessivo e costumeiro dos shows em Brasília, independente do porte e local, sempre reconheci o que PDR alcançou “padrão de excelência” no que se refere aos horários. Novamente as bandas subiram ao palco rigorosamente no horário estabelecido, esquema facilitado pelo revezamento dos dois palcos principais. O rigor com o horário causou até um fenômeno inverso: em dado momento o “Palco Pesado” chegou a ficar com o cronograma adiantado. Fator que me fez perder o show do Miasthenia, banda do DF que é ícone do black metal nacional, com mais de 20 anos de carreira. Na sequencia, o Hibria, banda do RS que construiu boa carreira fazendo um power/speed metal acima da média desde o debut “Defying The Rules”, de 2004, teve problemas técnicos que me obrigaram a abandonar a espera.
Nesta mistura, Emicida começou a minha programação mostrando porque pegou o bastão vago de ser o líder do que se pode chamar de novo rap brasileiro nos últimos anos, sendo não apenas artista, mas “agitador cultural” e voz de uma geração que estava abandonada para além do Racionais MC’s e pós morte do Sabotage. Emicida capitania este “novo rap”, trazendo na esteira diversos nomes da sua produtora/empresa Laboratório Fantasma, ditando (literalmente) moda. Mas tudo isso seria em vão se o cara não se garantisse no palco. E este show de 2016 serviu para comprovar que Emicida melhorou muito ao vivo. Não se compara o que era o show dele 5 anos atrás com o que é hoje. Banda completa, repertório reforçado pelo bom “O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui”, de 2013 e o mediano “Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa”, de 2015. Com uma penca de “hits” nas costas, caso de “Levanta e anda”, “Casa”, “Boa Esperança”, “Hoje Cedo”, “Triunfo” e por aí afora, Emicida levou banda pesada, com dois guitarristas e mostrou que, agora, não faz feio frente a alguns dos principais nomes surgidos no rap mundial nos últimos anos.
Na sequencia, o trio instrumental Passo Largo, de Brasília, mostrou muita técnica e virtuose, é um som redondo, bem feito, mas que falta algo, cai nas próprias redundâncias, nos próprios vícios e que, apesar de bem executado, acrescenta pouco à tradição da música instrumental brasileira. O Far From Alaska (RN) aportou no Porão com um certo lastro conquistado pelo disco “modeHuman” e por ser uma banda fora do circuito, liderado por duas mulheres e fazendo um som não exatamente brilhante mas que consegue se destacar nos melhores momentos, misturando grunge e metal em um “rock alternativo” bem produzido, caso de “Politiks”, “Dino Vs Dino” e “Thievery”.
Era vez da primeira grande banda da noite: Nação Zumbi executando na íntegra o “Afrociberdelia”, ainda da época com Chico Science e que completa 20 anos em 2016. Figura fácil em Brasília e com o jogo ganho, Jorge Du Peixe, Lúcio Maia, Pupillo, Dengue e cia não tinham como dar errado: com um repertório com “Cidadão do Mundo”, “Quilombo groove”, “Maracatu atômico” e “Manguetown”, o público vibrou nas músicas mais conhecidas porém o clima médio foi de um show morno para os menos iniciados nas 20 músicas do disco. Com tanta história pós-Science, foi um belo show mas que sem dúvida não é do mesmo nível de uma apresentação que mescla o que de melhor já produziram nos 7 discos de estúdio até aqui.
“Ali do lado” e também costumeiro nos palcos brasilienses, o vocalista e guitarrista Fernando Almeida mesmo disse que “tocar em Brasília é igual tocar em Goiânia” pra eles. Ou seja: o Boogarins estava em casa. Mais que as quatro músicas do repertório, começando com “Infinu” e terminando com “Auchma”, deixando “Lucifernandis” e “Doce” de fora, por exemplo, a psicodelia lisérgica dos goianos é um daqueles casos em que todo mundo se pergunta como conseguiram criar um público fazendo um som absolutamente medíocre e derivativo, repetindo-se à exaustão e abdicando de tocar as poucas canções que de fato tem em prol de jams “improvisadas” que deixam a sensação de estar sempre tocando a mesma música. A entrada de Ynaiã Benthroldo na bateria (ex-Macaco Bong) melhorou o nível do show, mas não o suficiente para salvar a apresentação. Claro que o seu conhecido empresário por trás e uma boa assessoria de imprensa explicam parte do “fenômeno”, mas não todo. Se tinham algum frescor quando surgiram lá em 2013 (época de um bom show que pude ver no Vaca Amarela), hoje a sensação que fica é que o hype não irá durar muito se a banda continuar fazendo sempre o mesmo e que cairá logo no esquecimento.
Quem não tem nada com isso é o Ira!, que chegou ao Porão do Rock comemorando os 30 anos de “Vivendo e Não Aprendendo” e, entre idas e vindas na carreira, fez o melhor show do festival. Não só pelo fato do disco citado ser um dos mais simbólicos da história do rock nacional, repleto de sucessos e pérolas como “Envelheço na Cidade”, “Dias de Luta”, “Vitrine Viva”, “Flores em você” e “Pobre Paulista”, mas porque Nasi segue vivo na cena e bem em suas limitações, porque Scandurra não costuma decepcionar no papel de um dos principais guitarristas do Brasil e porque ainda tivemos músicas como “Rubro Zorro”, do “Psicoacústica”, “Flerte Fatal”, “Eu Quero Sempre Mais” e “Núcleo Base”, pra fechar a conta lá em cima. Saber compor, ter canções para tocar e anos de estrada fazem toda a diferença, e isso o Ira! tem de sobra.
Depois, duas bandas da casa fizeram as honras no palco principal. Primeiro o Darshan, de Sobradinho, que me surpreendeu positivamente: grunge pesadão na linha Alice In Chains cantado em português de muito bom nível. Tiro curto e garantido de 30 minutos, assim como o pilhado Almirante Shiva e sua psicodelia hard/heavy calcada nos anos 60 e 70 que esbanja uma boa variação em comparação com a maioria das bandas do estilo e que conseguiu ótima trajetória em pouquíssimo tempo de vida. Sempre um bom show para se ver, de uma música talhada para o palco.
Era, enfim, a vez do Planet Hemp. A horda de fãs que se espalhava pelo festival sentados pelos cantos esperando apenas a vez dos cariocas subirem ao palco mostrou que a carência é uma força poderosa. Abarrotando a primeira metade do estacionamento do Mané Garrincha, era palpável a ansiedade, a adrenalina e a espera do público, muitos que provavelmente mal tinham nascido quando a banda se separou em 2001. Liderados por Marcelo D2 e BNegão, o Planet tratou de incentivar as rodas de pogo que foram crescendo e se espalhando na plateia, alimentada por um show repleto de hits como “Legalize Já”, “Dig Dig Dig”, “Fazendo a cabeça”, “Ex-Quadrilha da Fumaça”, “A Culpa é de Quem?”, “Raprockandrollpsicodeliahardcoreragga”, “Zerovinteum”, “Queimando Tudo” e “Mantenha o Respeito”, que fechou a apresentação, às 3:20.
Com discursos políticos inflamados especialmente de BNegão, criticando veementemente o atual governo brasileiro e apoiando o movimento de ocupação das escolas pelos estudantes, incluindo a projeção de #ocupatudo no telão, o Planet fez um show muito pesado que não viveu só de nostalgia. Significativo para eles voltar à Brasília já que foi aqui que foram presos por “apologia às drogas” em 1997. Sobrou tempo ainda para uma versão de “Crise Geral” do Ratos de Porão, escolha sintomática, assim como “Futuro do País”, do próprio Planet, na parte mais política do show. Certeza que os fãs saíram satisfeitos e uma apresentação que mostra que o Planet ainda tem lenha para queimar além do óbvio, caso queira.
Uma edição sólida do Porão do Rock em 2016 para os cerca de 15 mil presentes de acordo com a organização. Um festival que, sem surpresas, segue firme fazendo o dever de casa bem feito.
Fotos: Divulgação PDR