Corpo estranho que traz um frescor para a cena brasiliense ao mesmo tempo que bebe na tradição do rock e da psicodelia dos anos 60 e 70, o Rios Voadores já vem fazendo um bom barulho nos últimos anos e chega finalmente ao primeiro álbum cheio, produzido pelos irmãos Dreher em Porto Alegre. O bom disco, autointitulado, tem a capacidade de atrair tanto os saudosistas do que de melhor já foi feito nesse país como um público que queira apenas ouvir uma música bem pensada e executada que não cheira a mofo e que funciona bem ao vivo.
Para falar sobre os detalhes das composições presentes no disco, a cena e a cidade de Brasília, influências e outras questões, conversamos com os integrantes da banda na entrevista que você lê abaixo.
Movin’ Up – Não seria exagero dizer que vocês são um corpo estranho na cena brasiliense, tomada pelo rock, metal, hardcore e, não raro, aquele indie post-punk. Como é surgir trazendo essa estética nova, ainda que conhecida?
Tarso Jones: Nossa estética acabou por ser vasculhada naturalmente pelas referências e inspirações que já nos moviam anteriormente. No cenário brasiliense atual está havendo um certo resgate nessa sonoridade mais rica de timbres e com liberdade criativa, como também acontece com a Almirante Shiva e mais recentemente com a Joe Silhueta. Cada composição fala por si só mas o conjunto delas acaba se fortalecendo e produz esse gosto novo e possivelmente estranho em certa medida, o que achamos ótimo!
Gaivota Naves: Quando a Rios surgiu o cenário brasiliense estava um pouco fragilizado. Dessa forma acabamos pegando carona no vácuo e puxando (imagino que pela novidade da proposta e por conta dos shows em espaços públicos) uma curiosidade não só na sonoridade da banda em si, como nas influências da década de 70 do rock brasileiro.
Beto: Realmente nós nos identificamos com uma tradição de rock dos anos 60/70 que hoje em dia já não tem a mesma popularidade. Ficamos felizes de não sermos os únicos que buscam um certo resgate dessa época tão rica em sonoridades e criatividade musical, ainda que em minoria, na cena brasiliense e afora. Na verdade, com o fato de Brasília ser uma cidade jovem e um aglomerado de culturas torna-se fácil criar a impressão de que algo diferente e pouco comum possa ser um corpo estranho, mas acredito que a cidade tem influência considerável nas nossas composições.
Movin’ Up – Inevitavelmente referências como Mutantes e, creio, música brasileira, psicodélica e progressiva dos anos 60/70 sejam as fontes que o Rios Voadores bebe. Como é a relação de cada integrante com essas influências e qual o desafio para que tudo não soe como cópia bem intencionada, porém mal feita?
Marcelo Moura: Cara, se é bem feita ou mal feita cabe ao público e à mídia especializada dizer. A gente gosta do que faz e acredita no trabalho. Pra mim escrevemos canções. As composições e os arranjos que ditam essas referências. Eu mesmo ouço muito Beatles, Tom Jobim, Eumir Deodato, Zimbo Trio, Elis Regina, Novos Baianos, uma pá de gente que não entra nas referências citadas pela banda. Ou seja, o que a banda tem em comum em termos de referências e que não fogem muito ao som que fazemos é o que sai como referências do grupo. O caminho na verdade é inverso, não são as referências que ditam o nosso trabalho e sim o nosso trabalho que desenha as referências. Gostamos de ser livres pra criar. Vai que no próximo disco as referências mudam tudo, pegamos Nick Drake, Bob Dylan. Tudo é possível afinal!
Gaivota naves: Todos nós temos um gosto muito diverso. Majoritariamente escutamos anos 60/70 seja na música instrumental, prog, rock, bossa, choro ou jazz e dessa forma acabamos pincelando tudo inconscientemente, até porque nosso processo não foi exatamente pensado para ser um álbum de setentismos brasileiros. Mas obviamente o disco acaba por refletir essa época para qual nossa pesquisa musical se direciona com muita força, principalmente para esse recorte esquecido do rock psicodélico, no qual a ponta do iceberg são Mutantes e Secos & Molhados, mas cujo grande corpo encontra-se por baixo de águas profundas, com bandas como: Casa das Máquinas, Som Imaginário, Som Nosso de Cada Dia, Os Lobos, Bango, Perfume Azul do Sol, Módulo 1000, Equipe Mercado, A Tribo, Ave Sangria, Lula Côrtes, Geração Bendita e lá vai lista…
Acredito que fora a questão da pesquisa, que é interessante por si só, a Rios tem também a questão da sinceridade das composições; as letras trazem algo que é diferente, porém comum a essa época como a relação entre o niilismo, a descrença, a solidão, o desespero, o medo de não ser o que se pensa e esse anseio de que algo se transforme, anseio de encontro, de esquinas, de trocas reais, de uma contra-mola que resiste.
Dessa forma não tem como soar como uma cópia – nós estamos vivendo essas questões hoje.
Beto: O que desafio é incorporar o espírito da estética passada que admiramos à nossa contemporaneidade. Mas as referências dos integrantes não se limitam a esses gêneros e são tão diversas que torna-se difícil fazermos simples cópias.
Movin’ Up – “O Sumiço” é um rock vigoroso que abre bem o disco com os riffs lá em cima, as guitarras na frente da brincadeira, tempos bem quebrados de pausa e retomada típicos do hard/heavy 60/70: vocês ainda pensam no formato “disco” e na ordem das músicas de acordo com a narrativa desejada? Essa coisa ultrapassada e, a meu ver, necessária?
Marcelo Moura: Total, pensamos muito nisso. E na minha opinião foi uma das partes mais divertidas da produção do disco. Imaginar o disco como uma obra maior que as músicas. Acho que a pegada é essa. Onde vão entrar as baladas? Começar com o que? O melhor set list jamais tocado ao vivo é o que se ouve no disco. E isso é uma parada muito foda, pois o disco vira uma experiência.
Tarso Jones: Pois é, pensamos na ordem e também nas composições específicas que estariam nesse primeiro álbum. Queríamos mesmo chegar nessa experiência de ouvir o disco inteiro, bem como em detalhes como por exemplo os segundos de silêncio entre uma faixa e outra, frequências e barulhos d´água, folhas, sinos, moedas e tudo o que as músicas pediam direta ou indiretamente. Foi uma necessidade divertida e o resultado reflete esse sentimento coletivo.
Movin’ Up – “Cenouras” é um grande resgate do Som Imaginário, banda que guarda muitos paralelos estéticos com o Rios Voadores, a exemplo de tantas da época e que vocês já vem tocando há alguns anos. Como foi a escolha e o processo de gravá-la, na tentativa de respeitar a original, mas colocar tempero próprio?
Marcelo Moura: Eu sou super fã do Fredera! Acho que as composições dele no Som Imaginário tem uma pegada humorística que gostamos muito e que queremos associar ao trabalho dos Rios também. O Fredera inclusive me confessou quando fomos pedir os direitos pra lançar a música que a letra era na verdade uma crítica a um empresário que o Wagner Tiso sugeriu para o Som Imaginário. O cara era um bom comerciante e não um bom empresário de banda. Daí o Fredera mandou pro Wagner Tiso: “Eu vou plantar cenouras na sua cabeça”. Super sutil e super estiloso. Quanto ao arranjo a ideia de respeitar o original foi mais uma reverência ao grupo que está entre as principais referências da banda. O solo de guita é simples e matador e o silêncio para grande frase das cenouras, acho matador. Torna a frase melhor ainda! Mas, proponho um jogo dos 7 erros nessa música? A gente dissecou o arranjo e ele tem no umas diferenças especiais, que deram o nosso calor para a música.
Gaivota Naves: Outra curiosidade foi que o show do Som Imaginário de 2012 no Teatro Nacional abriu um círculo de jams/gigs entre vários músicos da cena, levando a formação de várias bandas que hoje estão em atividade. Então mais que válida a homenagem!
Movin’ Up – Porque a opção de gravar em Porto Alegre? Além da amizade e tudo mais com os produtores, qual a ligação de vocês com a cena do sul?
Marcelo Moura: A ideia nasceu mais pelos discos que o Thomas e o Gustavo Dreher já tinham feito e que tinha tudo a ver com a cara que queríamos dar pro nosso album. Você já imaginou uma sessão de gravação, mix e master sem você ter que citar nenhuma referência para a produção? O nosso disco foi assim! E isso foi genial pra gente. Poupou um grande trabalho e o resultado taí, super mega blaster!
Tarso Jones: Quando fechamos com o Gustavo Dreher a princípio íamos gravar as baterias com o Thomas em Porto Alegre, mas aproveitamos e fomos todos pra fazer tudo o que fosse possível lá. Acabamos dormindo no estúdio/casa dos Dreher e captamos tudo em aproximadamente duas semanas. Eles são uma grande referência para o rock psicodélico nacional, foi surreal poder gravar no mesmo estúdio onde gravaram o Júpiter Maçã, Pata de Elefante e outros grandes nomes da cena gaúcha.
Gaivota Naves: Somos fãs dementes de Júpiter Maçã, tive a honra de cantar com ele em um show em São Paulo no club Saravejo. São tantos os nomes das bandas que rondavam nossa juventude e ainda giram na minha vitrola, como Plato Divorak, Marcelo Birck, Bidê ou Balde – todos gravados pelos irmãos Dreher. Então a escolha foi certeira, eles já sabiam que sonoridade tirar, as influências estavam na mesa. E a qualidade do trabalho foi algo que realmente deixou a gente bem feliz.
Movin’ Up – “Barnabé Itamar Produções” entrega o jogo no próprio nome. Ares de Arrigo e Itamar Assumpção – numa faixa com guitarras psicodélicas, quase heavy psych. Há também essa pegada de vanguarda paulista na Rios?
Marcelo Moura: A música foi na verdade uma tentativa de descrever o nosso caos criacional. A comparação com um set de filmagem que serviu de disfarce veio da Viviane Yanagui e do Tarso Jones. O que foi ótimo, pois já tivemos feedback de várias pessoas que trabalham com o audiovisual e que se identificaram muito com a real da letra.
Gaivota Naves: No som em si não, mas tem essa pegada da lira paulistana de autonomia, do faz o que pode, dessa coisa de ser operário/militante da música e isso nos trouxe a inspiração para a letra, que localizamos num set de filmagem marginal, sganzerlírico caótico. Resolvemos fazer essa homenagem porque escutamos muito e adoramos o disco Clara Crocodilo do Arrigo Barnabé e o Beleléu, Leléu, Eu do Itamar Assumpção, entre os milhares de outros.
Movin’ Up – “Praça Central”, que começa com uma sanfona…semi acústica, quase circense, tem um arranjo que segue num crescendo. “A dança da insensatez é que a vida está fora das grades”, diz a letra. É uma das melhores do disco, diga-se e que concentra todas as participações especiais. Gostaria de saber um pouco mais sobre ela.
Marcelo Moura: Essa é uma composição da tríade fundadora dos Rios Voadores. A Gaivota chegou com uma ideia melódica para o começo da música, eu cheguei com a melodia do refrão, depois trabalhamos a letra eu e o Tarso Jones e a Gaivota chegou para finalizar com a gente. Me lembro muito desse dia que fizemos a música, antes de os Rios terem decolado. O Gustavo Dreher, produtor do disco, ouviu a música e se encantou com ela e nos presenteou com um arranjo de sopros (tuba, sax tenor, sax barítono e clarineta) e a ideia do acordeon já nasceu com a composição, meio que uma caixinha de música mesmo. Daí convidamos o Leo Airplane de uma banda muito foda lá de Aracaju, a Plástico Lunar, e ele mandou o acordeon pra nós.
Gaivota Naves: Olha vou ser loucona e jogar as imagens sensoriais e motivações:
A Praça Central vem da ausência de esquinas, do cotidiano maçante, do amortecimento, o cansaço nos olhos das pessoas – que passam nas ruas pouco movimentadas dessa cidade escultura. A blindagem dos carros, dos empregos públicos, dos perfis em redes sociais, o medo do encontro e o niilismo que bate a porta de um domingo de ressaca… essa música é um espaço sonho, um circo que se torna pesadelo – como a tomada da consciência da estagnação e a vontade muda/nua de acordar.
Movin’ Up – Gaivota: “Música do Cais”, sua com Viviane Yanagui, é bem Gal Costa / Maria Bethânia no início, culminando em psicodelia prog no final, uma música madura, de excelente arranjo, que mescla leveza com um punch bem trabalhado. Como vocalista e performer, quais suas maiores influências, mais que isso, o que você busca enquanto artista?
Gaivota Naves: Bethânia, Gal Costa, Flora Purim, Rita Lee, Ney Matogrosso, Jeanne Lee, Karen Dalton, Ella Fitzgerald… criaturas que são completemente permeáveis pela palavra, pelo ruído, pelo outro e que se permitem ser a música, pessoas que são canal/meio e não o fim… Eu busco isso, ser atravessada e atravessar, ser esse canal irrefreável. O que não é dessa forma não interessa.
Movin’ Up – Importante, o disco tem “só” 41 minutos. Concisão em tempos de exagero em todas as frentes. Houve a preocupação de não pecar pelo excesso? Muitas composições na manga ficaram de fora?
Marcelo Moura: Cara, na verdade o tempo do disco tem a ver com o lançamento do álbum em vinil. O tempo do LP nos agrada muito. Sempre achei muito esses discos de 70 minutos. No mundo de hoje ninguém tem esse tempo mais de se dedicar a uma banda por 70 minutos. Se bobear nem disco ouvem mais. Galera quer mesmo videoclipes no Youtube. E composições na manga ficaram várias. Tivemos que fechar nas 11 faixas e tínhamos umas 20 quando começamos a fazer as escolhas. É legal pensar em como as faixas dialogam entre si formando um grupo coeso e às vezes bagunçado, mas sempre planejado. Mas, álbum é isso. Escolhas, afinal, não acreditamos que seja somente uma coletânea de músicas e sim uma proposta de audição que vai muito mais além.
Movin’ Up – Brasília deixou de ser uma coisa só e, principalmente, a ocupação do espaço público nos últimos anos, com inúmeros festivais e eventos acontecendo no Parque da Cidade, no Museu, na Concha Acústica, na Funarte, Lago afora, etc e também em espaços que estavam quase abandonados, como o Conic. Quão importante é o público ocupar a cidade e, também, criar uma cultura de não ficar refém de eventos gratuitos? Estamos chegando num equilíbrio razoável na opinião de vocês?
Tarso Jones: De fato as ocupações tem se intensificado de uns anos pra cá. No caso da capital federal era imperativo encontrar novos lugares e maneiras de veicular bandas relativamente novas e produtivas e temos trabalhado para que esse intercâmbio continue sendo visível e se fortaleça ainda mais. Nossa equipe vem crescendo bem como o cenário de produção para que esse equilíbrio seja viável e mais espaços possam ser ocupados através da música independente e das artes em geral.
Hélio Miranda: A vocação de Brasília sempre foi pela ocupação dos espaços públicos e essa ficha está caindo agora. É uma cidade nova e quem mora aqui ainda está aprendendo e criando uma cultura de utilização dos espaços. Vários eventos estão surgindo nas entrequadras, nos gramados arborizados que existem entre as principais avenidas da cidade. É um terreno fértil para a realização de novos projetos que podem dar força ao surgimento de uma primavera cultural em Brasília. É um processo que vai se intensificar ainda mais.
Fotos: Thaís Mallon / Divulgação