Vivemos tempos de falsificação grosseira da história. O jogo sórdido da simplificação vence com facilidade porque a burrice vem pronta e embalada, para consumo rápido e fácil. A crítica e a reflexão são vistas como inimigos. Elas ameaçam esse mundo distópico de realidade paralela alimentado por notícias falsas e verdades distorcidas. Há que se dizer que a história é e sempre foi um campo de disputa. O passado, inclusive, nunca está inerme. Nunca esteve e nunca estará imune ao dissabor de quem o controla.
A história é uma arena de batalha permanente. Cada fissura no tecido social abre flancos que normalmente são usados com objetivos espúrios, por quem tem muito a perder com essa coisa inconveniente que é o pensamento crítico, sobretudo doutrinas autoritárias e sociedades em que o nazifascismo está galopante. Este é o Brasil que Roger Waters encontrou e, inevitavelmente, chocou-se contra o muro quase intransponível dos eleitores de Bolsonaro.
Como explicar, afinal, para um inglês que teve seu pai morto na II Guerra Mundial enquanto combatia o fascismo em 1944 na Itália quando Waters tinha apenas 5 meses de idade que, em um país que normaliza a barbárie, há um exército de zumbis capaz de dizer que “o nazifascismo é de esquerda”, tentando inclusive “desmentir” a Embaixada da Alemanha e absolutamente todos os intelectuais sérios a respeito do tema?
Como explicar a Waters, que dedicou sua vida inteira, pessoal e artística, a combater o autoritarismo, que, no Brasil, milhões de pessoas votam orgulhosas em um candidato que defende a tortura e a ditadura, o extermínio de “adversários”, a criminalização de movimentos sociais, a cassação de partidos políticos, o estupro de mulheres, o racismo, a perseguição aos gays, o preconceito e a eliminação primeira e última do “outro”? E mais, que boa parte dessas pessoas são, também, seus fãs?
É contra essa mediocridade falsificadora reinante que Waters se chocou no primeiro show em São Paulo, quando endereçou diretamente o fascismo de Bolsonaro, colocando-o corretamente ao lado de outros nomes que representam a ascensão da extrema-direita no mundo, de Trump a diversos países europeus. A reação do público, mista, entre o júbilo e a vaia, provocou um verdadeiro curto-circuito na cabeça de Waters. Então estou sendo atacado e vaiado por criticar o fascismo? Sim, está.
E aí precisamos voltar a Orwell não apenas porque Orwell dedicou sua obra inteira a analisar o autoritarismo, direta e indiretamente, mas também porque Waters e o Pink Floyd tem ligações umbilicais com o autor. Em “1984”, livro chave da sua obra, Orwell diz que quem controla o passado, controla o futuro, quem controla o presente, controla o passado. Mas as alterações na história nunca passavam como mudanças de fato. O que agora era verdade sempre foi verdade. Bastava apenas “uma ideia infinda de vitórias sobre a memória”. O puro e simples controle da realidade ou, em “novilíngua”, o novo “idioma” deste mundo de simplificações grotescas, o controle da realidade é o duplipensar. Mas que diabos é isso?
“Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da democracia e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, traze-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torna-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência e então tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra “duplipensar” era necessário usar o duplipensar”.
Qualquer semelhança com o mundo criado por Bolsonaro e sua equipe e engolido prontamente pelo séquito de milhões de eleitores sobretudo via whatsapp não é mera coincidência, é estratégia. A tática de Bolsonaro – seja orientada por Steve Bannon seja tipificada pelas dezenas de generais que fazem parte da sua campanha – é duplipensar purinho. Todo o seu discurso, cada movimento que faz, cada declaração que dá, cada fake news que espalha, cada suposta “contradição” do seu comitê visa o controle da realidade. É duplipensar em estado bruto e também lapidado.
É assim que não é tão difícil compreender como um fã de Roger Waters e do Pink Floyd é capaz de, ao mesmo tempo, adorar a banda e votar em Bolsonaro. Ouvir e cantar um discurso antifascista e ser fascista na prática, na crença e nos costumes, consciente ou não. Novamente: “ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas”.
Aqui entra o fenômeno não exatamente recente do “roqueiro reaça”. O reacionário convicto que tem no rock o “estilo de música favorito”, parte da “maneira como leva a vida”. O rock, supostamente rebelde e revolucionário, teoricamente questionador, há muito já processado, branqueado e falseado, há muito já parte intrínseca da indústria cultural contemporânea do consumo acéfalo. Não é preciso ler os teóricos da Escola de Frankfurt para chegar a tal conclusão.
O rock como parte fundamental da cultura pop tem no Pink Floyd um dos seus exemplos mais únicos. “The Dark Side Of The Moon” é um dos cinco discos mais vendidos da história da música. 45 milhões de cópias – em números subestimados – de um álbum conceitual, de uma banda de rock progressivo, que endereça, do início ao fim, a alienação, as psicoses, o desconforto da modernidade, a ganância, a ansiedade, a angústia, os transtornos mentais causados pela sociedade contemporânea.
Nada mais paradoxalmente popular, portanto, que “The Dark Side Of The Moon”, o disco que mudou o Pink Floyd de patamar, que catapultou a banda de uma estrela do underground psicodélico para os mega shows em estádios, o distanciamento cada vez maior entre banda e público e entre seus próprios integrantes. Que registra o início do domínio de Waters – que assina sozinho (mais) ou em conjunto (menos) quase todas as faixas do álbum – com exceção de duas instrumentais. “Dark Side…” é o início do fim do Floyd, dos conflitos e do esgarçamento da tensão que levarão em última instância a “The Wall” e ao fim da banda pós-Barrett, sua fase mais longeva e popular até então.
A história de Waters, portanto, é uma alegoria exata do show, do momento atual, dos conflitos, paradoxos e tensões que só o Brasil, com a sua jabuticaba de fascistas ouriçados que se julgam donos da história contra todo o resto do mundo, pode oferecer. De eleitores de um candidato que louva o mais notório torturador da ditadura brasileira e que tem como livro de cabeceira justamente “A Verdade Sufocada”, escrito por Brilhante Ustra, este mesmo torturador que exprime seu desespero, sua busca incessante em reescrever a história. Nada mais duplipensar do que isso.
O fã do Pink Floyd, banda que ultrapassa os nichos de mercado e se tornou um dos pilares da cultura pop contemporânea, portanto, certamente é bastante diversificado. E há aqui o elemento do espetáculo, teórica e diretamente falando, o cidadão que vai em grandes eventos para se sentir parte daquele acontecimento, para se exibir em redes sociais, como puro entretenimento, mesmo que no caso de Waters não seja só isso.
Em Brasília, após a querela em SP – teve muita gente abandonando o show cedo e querendo até (risos) fazer boletim de ocorrência contra Waters – a imensa maioria do público reagiu positivamente às suas críticas contra o fascismo e Bolsonaro, levando-o até a se emocionar. Perto de mim, um senhor goiano com camisa de tintas policiais, acuado pela maioria, não se conteve ao gritar “mito, mito, mito!”, prontamente contido pela esposa. Para quem gosta da metáfora do FlaxFlu, o clima no Mané Garrincha era nítido.
O incômodo explica-se também porque não se trata de uma mensagem curta e breve projetada no imenso telão durante uma das músicas. Waters dedica todo o intervalo do show, cerca de 15 minutos, em um crescendo de mensagens contra o autoritarismo, o fascismo, o domínio militar, a espionagem no mundo, as redes sociais, a supressão de liberdades individuais e de expressão, a defesa de direitos humanos, endereçando e nomeando adversários de tudo que ele acredita, até chegar a Bolsonaro – com uma tarja de “conteúdo político censurado” após o show em SP – o suficiente para trazer desconforto aos eleitores do Messias.
Das três turnês de Waters que tive a oportunidade de ver – 2007 no RJ, 2011 em SP e esta “Us + Them” em Brasília – a atual é a mais politizada de todas. Não por acaso: tivemos a ascensão da extrema-direita em praticamente toda a Europa e a vitória de Trump nos Estados Unidos, alvo principal de Waters. Durante “Pigs (Three Different Ones)”, música de “Animals”, de 77, todo o conceito é direcionado a defenestrar, expor e tripudiar da estupidez, do racismo, da xenofobia, da insegurança sexual, do autoritarismo de Trump, retratado em montagens francamente ofensivas, exposto em frases cretinas de sua autoria, até culminar em “Trump é um porco”, já que “os porcos mandam no mundo” e “que os porcos se fodam”, conforme levantado em cartazes por Waters, devidamente mascarado de acordo com o conceito de “A Revolução dos Bichos”, de Orwell, fábula-livro que serviu de base para todo o material do disco citado.
É de se pensar não só se algum artista brasileiro terá a coragem de ser tão incisivo, tão gráfico e direto em críticas a Bolsonaro, caso eleito, mas sobretudo se esse tipo de crítica será permitida e aceita sem represálias. Se não viveremos a volta da censura. Validado pelo voto, que cara terá o fascismo brasileiro do século XXI? Com um presidente fraco cercado de generais e um Congresso e Senado em que dominam a bancada BBB (bala, bíblia e boi), não é necessário um golpe propriamente dito para que toda a agenda de criminalização de movimentos sociais, o ultraliberalismo entreguista da Universidade de Chicago via Paulo Guedes, a destruição total dos biomas brasileiros, a perseguição a adversários políticos e o empoderamento dos nazifascistas brasileiros, como já se observa na onda de violência alimentada por Bolsonaro Brasil afora.
É este ninho de serpente que Waters encontrou. É nesse contexto tipicamente brasileiro após o fim do pacto que mantinha a Nova República em pé, mesmo cambaleante, que Waters traz toda a sua parafernália, seu espetáculo, suas críticas e sua história. Para quem se acostumou a falseá-la e simplificá-la de acordo com o que foi levado a acreditar para um projeto de poder autoritário que tem o intelectual como inimigo, é exigir demais o mínimo de discernimento. Perdemos todos. Mas toda a carreira de Waters e o mundo nos prova que, de fato, todos os seres humanos são iguais, mas alguns serão sempre mais iguais que outros.