Cidadão Instigado e Otto lançaram os melhores discos de 2009: “Uhuu!” e “Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos”. Discos que, inclusive, podem ser colocados entre os melhores da década no Brasil. Tamanho crédito veio em duas trajetórias distintas: o Cidadão, na figura de Catatau, vem colecionando elogios desde a estreia em 2002 com o “O Ciclo da Dê.Cadência”. Curiosamente – e só me dou conta disso agora – uma expressão que cabe perfeitamente para ilustrar o que aconteceu com Otto desde o debut solo em “Samba Pra Burro”, de 1998.
A redenção de Otto (ou o fim da decadência artística em que estava), portanto, tem parte da influência direta de Catatau. Mesmo tocando com o pernambucano há anos, é nas guitarras de “CMADSI” que a coisa engrena. Como disse em artigo prévio aqui na Movin’, Catatau tem participado – não por coincidência – tanto de novos artistas de destaque quanto de “retornos” a boa forma de gente com certa estrada nas costas, caso de Arnaldo Antunes e seu “Iê Iê Iê’.
Ao vivo, a boa formação do Cidadão Instigado eleva à última potência o traçado riscado nos três discos de estúdio: a conhecida mistura de música nordestina romântica (e outros ritmos brasileiros), rock, progressivo e até um tom psicodélico. “Escolher Pra Que?” é a síntese disto. Ainda temos a ótima “opobredosdentesdeouro”, do “E o Método Tufo de ExperiênciaS” e duas do “Uhuu!”: “Doido” e “Homem Velho”.
Como convidado, simplesmente o inventor da guitarrada paraense (que lançou o primeiro disco em 1977): Mestre Vieira. Influência óbvia de Fernando, interessante vê-lo tanto solo como dentro das músicas do Cidadão. É transparente a satisfação de Catatau com a presença de Mestre Vieira. Mas o show termina com peso e um típico “salve o rock!” proferido por Catatau.
Otto chega com o jogo ganho. Nitidamente alterado, tem em sua banda a retaguarda ideal para segurar as derrapadas: as guitarras de Fernando e Boca, a bateria de Pupillo (produtor do seu último disco e membro da Nação Zumbi), o teclado de Bactéria (do Mundo Livre S/A, sua primeira banda) e Malê e Axé na percussão (seu instrumento de origem).
O repertório de “Certa Manhã” domina o espetáculo: “Filha”, “Janaína”, “Crua” e a espetacular “Saudade”. Entre as músicas, Otto discursa. Confuso, perdido, tropeçando nas palavras, nas promessas (“não é de campanha, mas vou procurar fazer uma homenagem a Brasília no meu próximo disco”), elogia a cidade (“síntese do Brasil”) busca desesperadamente o povo: “esta cidade foi construída pelo povo e ele está aqui”. Por diversas vezes resgata a força do popular, da raiz, da mistura. Defende a liberação da maconha (“é uma hipocrisia, tem certas coisas que não dá mais pra aceitar, não dá”). Oferece “Naquela Mesa” (de Sérgio Bittencourt, imortalizada por Nelson Gonçalves, incluída em linda versão em CMADSI) para Lula: “já que estou em Brasília, capital do meu país, ofereço esta em homenagem ao Lula, meu presidente, nordestino como eu, do agreste como eu” e toma o início de uma vaia burra por isso.
Otto dança. Dança loucamente, rebola, corre de um lado para o outro, expurga os demônios. Senta, deita, se molha. Abraça os companheiros de banda. Anuncia cada momento. Discursa também em meio às músicas. Deixa a letra correr por si. Retoma. Se debruça. Proporciona momentos cômicos pelos comentários desencontrados e pela “naturalidade” que exala. Entrega-se a trejeitos diversos. Possesso, afeminado. Primitivo. Catarse pura e simples. O habitual discurso non-sense potencializado.
Não faltam boas peças de obras anteriores: o hit/regravação “Pra Ser Só Minha Mulher” (de Erasmo Carlos e Ronnie Von), “Dias de Janeiro”, “Lavanda”, a abreviada “Condom Black (Stop Play)”, “Nebulosas” – uma das melhores de “Sem Gravidade” – “Por Que” e “Ciranda de Maluco”. Músicas que mostram que talvez a obra de Otto mereça uma revisão mais generosa que a costumeira.
Convida Lirinha, do Cordel do Fogo Encantado (que recentemente anunciou o fim das atividades). Deixa o palco e Lirinha manda muito bem “Morte e Vida Stanley”, do último disco do seu grupo, “Transfiguração”, de 2006. Nunca fui grande admirador do Cordel, mas não dá pra negar que o cara sabe o que faz no palco. Tem talento pra coisa. E dá a cara pra bater.
Na volta de Otto, “6 Minutos”. A mais pungente e forte de “Certa Manhã”. “Essa é foda, Otto, essa é foda. Uma das melhores que já ouvi”. Derrama-se Lirinha. “Até pra morrer, você tem que existir. (…) Instantes acabam a eternidade”. “O Celular de Naná” e a inevitável “Meu Mundo” (com participação de Lirinha também no disco) vão levando ao fim um show certamente singular, que às vezes perde-se pelo exagero da porra-louquice, atrapalhando algumas músicas. Mas, se peca, é pelo exagero, pelo tesão. Algo plenamente perdoável.
Fotos: Tamires Kopp/MDA