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Charles Aznavour era a última espécime de um mundo que não existe mais

Aos 94 anos, o franco-armênio Charles Aznavour deixa um legado de mais de 1.200 músicas gravadas em sete línguas diferentes. O baixinho de 1,65m que era considerado muito feio e de voz “ruim” deixa, mais que uma carreira que perpassa 8 décadas e 100 milhões de discos vendidos, todo um mundo que se vai com ele.

Mestre da chanson ao lado de Léo Ferré, Georges Brassens, Jacques Brel, Boris Vian e Serge Gainsbourg, quase todos nascidos na década de 20, com exceção de Ferré (1916), Aznavour foi disparado o mais longevo deles, quem encarnou de forma mais direta o papel de embaixador da canção francesa do século XX até os dias de hoje.

Filhos dos escombros da Primeira Guerra Mundial e todos que passaram já a vida adulta e início da carreira durante a Segunda Guerra, esta geração representa um legado de força, de dor, de beleza e melancolia únicas, de uma qualidade poética dura e provocadora mesmo nas canções mais românticas, mesmo quando cantam o que o amor tem de mais sentimental e clichê. Nenhum deles o faziam, no entanto, de forma óbvia.

Aznavour era o último da espécie. Filho de armênios que fugiram da perseguição turca na terra natal, os pais dele atuaram do lado da Resistência na Segunda Guerra, ajudando a esconder e salvar judeus e comunistas de uma Paris ocupada, na mesma época em que o filho despontava “apadrinhado” por Edith Piaf.

Como ator direto da era dos extremos, Aznavour representa como poucos o espírito dos tempos, e a sua linhagem não encontra descendentes diretos, por mais que a influência dele e dos citados aqui seja obviamente extraordinária e incalculável. É impossível, afinal, emular uma poética e uma sonoridade que só a experiência proporciona – e uma experiência marcada por guerras, por maio de 68, por transformações sociais, culturais, políticas e econômicas muito próprias e distintas.

“Antes de Aznavour, a desesperança não era popular”, disse uma vez o diretor Jean Cocteau, com quem o cantor trabalhou em “Le Testament d’Orphée”. Na sua carreira no cinema, atuou também em filmes de Truffaut, Chabrol e outros. A morte de Aznavour encerra simbolicamente uma era de contadores de histórias com uma agudez inimitável, uma doçura amarga que ninguém tem.

Deixo aqui o vídeo e a letra de “As crianças da guerra”, exemplo, dentre centenas de outros, da sua verve e do seu espírito.

As crianças da guerra
não são crianças
elas têm idade de pedra
de ferro e de sangue

sobre as lágrimas das mães
elas abriram os olhos
em dias sem mistérios
e sobre um mundo em chamas

as crianças da guerra
não são crianças
elas conhecem a terra
a fogo e a sangue
elas tiveram quimeras
para aguçar seus dentes
e tomaram cemitérios
por jardins de infância

essas crianças filhos da tempestade
e dos dias incertos
que tinham a face
mirrada pela fome
envelheceram antes do tempo
e cresceram sem cuidado
sem alcançar a herança
que deve legar o amor

as crianças da guerra
não são crianças
elas viram o ódio
sufocar seu canto
aprenderam a se calar
e a cerrar os punhos
quando vozes mentirosas
lhes ditavam o destino

as crianças da guerra
não são crianças
com seu ar orgulhoso
e seus olhos esbugalhados
assistiram à miséria
encobrir seu entusiasmo
viram mãos estrangeiras
esganar suas primaveras

essas crianças sem infância
sem juventude, sem alegria
que tremiam indefesas
de medo e de frio
que desafiavam o sofrimento
mas calavam suas emoções
que viviam de esperança
são como você e eu

amantes da miséria
amantes infelizes
de amores singulares
de sonhos inconstantes
que procuram a luz
mas a temem no entanto, pois

os amantes da guerra
permaneceram sendo crianças

Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Especiais