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Sobre David Bowie ou como os meus heróis estão morrendo de câncer

Texto: Maurício Angelo

Todas as fotos por Mick Rock

O mundo acordou de luto neste 11 de janeiro de 2016. Perdemos uma figura rara, de talento incomparável, um alienígena que mudou para sempre a história da música e que produziu como ninguém, com variedade e genialidade sem par. Perdendo uma batalha de 18 meses para o câncer, uma condição que somente as pessoas mais próximas sabiam, fica óbvio e escancarado que “Blackstar”, o disco lançado apenas 3 dias atrás, no seu aniversário de 69 anos, é a sua maneira brilhante e única de dar adeus ao mundo. O vídeo de “Lazarus”, as letras e a atmosfera geral de “Blackstar”, começando pelo título, é a despedida e o presente que Bowie nos deu.

Impossível resumir uma carreira de mais de 50 anos em único parágrafo. Bowie, no entanto, merece todos os elogios e o reconhecimento que recebeu em vida, assim como o inevitável choque e o tributo que está recebendo agora. Por excelência, por pioneirismo, por talento e por sua busca implacável em se reinventar constantemente, ano após ano, Bowie construiu uma discografia que se sobressai de maneira tão absurda que todas as tentativas de enquadrá-la em rótulos como “art rock”, “art pop”, “new wave”, “experimental” e por aí afora empalidecem ante o simples ato de dar play em qualquer disco da sua fase áurea e ouvir o que ele tem a dizer. Para quem se despede com um álbum da qualidade de “Blackstar”, falar em “fase áurea” parece coisa típica de “crítico” e realmente é.

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Bowie se despede no topo, de maneira que só alguém da sua estirpe é capaz de fazer. Se você olhar para o pop hoje e ouvir “Blackstar”, o que sobra parece brincadeira de mau gosto. Bowie estava lá e pavimentou seu próprio caminho, até o fim. Bowie elevou essa tal de “música pop” a outro nível. Mostrou que era possível fazer coisas que o público sequer sonhava. Nunca foi refém do mercado: sabia criar a sua própria demanda e sabia explorar as “ondas” que atravessou de uma maneira bem peculiar.

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O câncer levou David Bowie para sempre. E levou também Mick Ronson, guitarrista original dos “Spiders From Mars”. Assim como o câncer levou Lemmy Kilmister, do Motorhead, uma morte que nem nos recuperamos ainda. O câncer levou Syd Barrett, a primeira mente criativa por trás do Pink Floyd, a banda da minha vida. O câncer levou Richard Wright, tecladista do Floyd. O câncer já levou também Frank Zappa, Carl Wilson, George Harrison, Ray Charles, Johnny Ramone, Ronnie James Dio, Levon Helm, Adam Yauch, Ray Manzarek, Tommy Ramone, Joe Cocker, Daevid Allen e tantos outros. Nos últimos anos, Tony Iommi e Bruce Dickinson lutaram (e venceram) o câncer.

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Todos os meus “heróis” estão morrendo de câncer. Todos eles vencidos pelo tempo. Destruídos por essa doença que parece ser o destino de todos nós. Mas você me ensinou, Bowie, que “podemos vencê-lo para todo o sempre” e que, assim, “podemos ser heróis”, ainda que por um único dia. Você foi o herói de tanta gente por tanto tempo. Você estava aqui, nos salvando da mediocridade eterna. Evitando que fôssemos sugados pelas esterilidade da máquina. Adicionando cor, brilho e genialidade às nossas vidas miseráveis.  Derrotando, por décadas e décadas e até o último minuto a estupidez reinante na música e fora dela. Obrigado, mesmo, por tudo. Nós ficaremos seguros. Ainda que por um último dia a mais.

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Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Destaques Mundo