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Arcade Fire e o mundo a caminho do apocalipse

Por Paulo Floro, da Revista O Grito!

Nada nem ninguém pode deter a tecnologia é o mantra mais disseminado nesses tempos em que nos vemos enredados em uma tela brilhante quase o dia inteiro.Reflektor, o quarto disco da banda canadense Arcade Fire quer debater sobre as relações humanas, sobre nossa contemporaneidade, cada vez mais apressada, sem tempo para um respiro que nos possibilite realizar “onde vamos parar?”. O trabalho teve inspiração do longa Orfeu Negro, de Marcel Camus (de 1959), da música haitiana tradicional e das ideias do pensador dinamarquês Søren Aabye Kierkegaard. Além desse escopo conceitual, o disco contou com um elemento aglutinador que fez toda a diferença: a dance music com sabor oitentista trazidas pelo produtor James Murphy, um dos nomes mais importantes da eletrônica e fundador do LCD Soundsystem.

A referência mais clara a Kierkegaard é o que o filósofo dinamarquês chamou de “uma era da reflexão” – e que foi explicado mais de uma vez pelo líder do Arcade Fire, Win Butler, em entrevistas. Uma ideia cara para a banda que se apropriou das críticas do filósofo em relação à alienação para fazer referência aos dias atuais. Em 1846, Kierkegaard, que também é considerado o pai do existencialismo, formulou seu conceito da era do presente (The Present Age). O pensador vivenciou a explosão da popularidade da imprensa de massa, dos jornais diários e revistas que eram consumidos por uma parcela cada vez maior da população das grandes cidades. “A era presente é a era da publicidade, a era dos anúncios diversos: nada acontece, mas ainda assim há publicidade instantânea”, escreveu ele.

É aí que o Arcade Fire pega carona para fazer uma relação com os dias atuais. Isso nem é tão difícil de imaginar – Twitter, Facebook, Instagram, todos buscam uma individualidade e todos parecem ter algo a dizer sobre tudo. Na faixa de abertura de Reflektor, Win Butler parece cantar sobre o Facebook: “Estamos tão conectados, mas somos mesmo amigos?”. A letra pode ir mais longe, ao gosto de quem se dispor a interpretá-la — estamos isolados, presos em um prisma de luz, nas telas dos dispositivos. Aí voltamos a Kierkegaard, que enxergava com pessimismo o fato dos meios de comunicação possibilitarem às pessoas formar uma opinião de maneira mais rápida, em detrimento de uma substância que teoricamente viria dos livros. O mundo não é mais a Europa do século 19 (o mundinho do filósofo naquele tempo), mas suas teorias vêm sendo repescadas para entender esses dias atuais de tantas vozes falando ao mesmo tempo.

O escritor norte-americano Jonathan Franzen, autor de Liberdade, escreveu um artigo interessante na piauí deste mês que acrescenta ideias interessantes nesse debate levantado pelo Arcade Fire. Ele comenta a indulgência motivada pelas redes sociais enquanto o mundo caminha “para um apocalipse”, uma clara divergência entre o progresso tecnológico e o avanço moral e espiritual. Fala também da falência da utopia dos anos 1990, que acreditava que a internet traria mais amor e compreensão entre as pessoas. Vale a pena ler o artigo na íntegra.Reflektor é um disco que remói esse panorama atual, seja levantando questões sobre isolamento e individualismo (“Normal Person”), efemeridade (“You Already Know”), ansiedade e até pornografia (“Porno”). No meio disso, ainda há o mito de Orfeu e Eurídice, estampado na capa através de uma escultura de Auguste Rodin e nas faixas “Awful Sound (Oh Eurydice)” e “It’s Never Over (Oh Orpheus)”. Na mitologia, Orfeu tenta resgatar sua amada ninfa Eurídice do Hades, mas com a condição de que não olhe para trás durante a saída. Como ele não consegue conter a ansiedade, ao se virar ele a perde para sempre.

O clipe interativo "Just A Reflektor" faz diversas referências aos conceitos do disco (Reprodução)

O clipe interativo “Just A Reflektor” faz diversas referências aos conceitos do disco (Reprodução)

O Haiti é aqui
Em seus livros, Kierkegaard também acreditava que o homem caminhava para a indolência, uma falta de paixão e ideais que o tiraria do caminho da ação de fato. Há muito dessas ideias em Reflektor, soltas aqui e ali em muitas faixas, mas a letra que mais faz relação direta com esse pensamento é “Here Comes The Night Time”, que critica o fato dos missionários cristãos irem até o Haiti devastado pelo terremoto para ensinar aos habitantes sobre Deus. Diferentemente de Nietzsche e outros filósofos existencialistas que tinham o ateísmo como base do pensamento, Kierkegaard refletia bastante sobre fé e dizia que apenas frequentar paróquias não seria suficiente para um exercício autêntico do cristianismo. O “tonar-se cristão” seria algo conseguido com a solidão e muito sofrimento.

A religião sempre esteve presente no Arcade Fire desde o primeiro disco,Funeral (2004). O próprio Win Butler, criado como mórmom no Texas (EUA), foi um estudante de teologia. Nesse novo trabalho a presença do vodu haitiano está mais forte, seja no clipe interativo “Just A Reflektor”, que registra um transe espiritual ou na faixa “Awful Sound”. Dividida em duas partes, “Here Comes The Night Time” retorna na segunda metade do álbum de maneira mais dark e triste em oposição à primeira parte mais dançante e anos 1980. Em ambas há a crítica ao absurdo da religião que força um entendimento cruel aos haitianos e tenta limá-los de sua cultura por causa de uma suposta missão cristã. Vale lembrar do evangelista Pat Robertson, que disse que o terremoto de 2010 teria sido causado por um castigo pelos haitianos “terem feito um pacto com o demônio”.

Como Kierkegaard, o Arcade Fire nunca foi um nêmesis cristão, mas um conciliador em relação à religião. Desde que surgiram na música pop, a banda mostra uma relação afetiva com o Haiti, onde a cantora e multi-instrumetista da banda Regine Chassaigne tem família. Desde o terremoto, o grupo se mostra como uma ponte entre a pequena ilha e o resto do mundo. Nesse disco, eles decidiram também pegar referências da música tradicional de lá, a rara, para incluir no bolo estético de Reflektor. O gospel parece dar liga a todo o disco, com a presença de questões grandiosas a respeito da espiritualidade e da existência de Deus: Judas, os salmos, a vida após a morte, ressurreição (“Afterlife”), céu, apocalipse, santos (“Joan Of Arc”) é só procurar que tudo está no disco. Se por um lado, Butler critica a corrupção moral da religião cristã no Haiti, por outro parece buscar paixão na religiosidade.

Marketing de guerrilha ajudou a hypar o disco (Divulgação)

Marketing de guerrilha ajudou a hypar o disco (Divulgação)

Do rock de arena para a buate
Tudo é grandioso no Arcade Fire. Ainda como uma aposta do cenário independente em 2004, a banda conseguiu produzir apresentações vistosas para divulgar o ótimo disco de estreia, Funeral. Desde então, cada trabalho parece vir carregado de significado e muita promoção de marketing bem orquestrada. Depois de flertar com o rock mais clássico com forte inspiração em Bruce Springsteen e outros medalhões, o grupo decidiu partir para o dance club neste novo Reflektor.

Sonoricamente, Reflektor é o disco do grupo mais rico e diverso, que aponta para um caminho ainda incerto, mas com boas chances de renovação. Tido como “salvação do rock” (que os integrantes refutam), o Arcade Fire poderia relaxar em uma confortável posição de adoração. Este novo trabalho começou a ser gravado em 2011 e foi parte feito na Jamaica, onde o grupo trabalhou com Mark Dravs e mais tarde nos EUA, ao lado de James Murphy, do LCD Soundsystem. Foi Murphy que encontrou a forma que Regine e Butler buscavam para sua intenção em fazer um álbum “dançante”. O resultado foi um punhado de influências dos anos 1980 como B-52′s e New Order, mas sem ranço de saudosimo – e o mais importante, com a cara do Arcade Fire.

Para promovê-lo, os canadenses empreenderam uma espécie de marketing de guerrilha – à semelhança do que fez esse ano o Daft Punk e David Bowie – com ações orquestradas ao redor do mundo e diversos teasers. O disco também rendeu um belo trabalho audiovisual com participação de nomes como Roman Coppola, Anton Corbijn, entre outros.

Com quase 1 hora e meia de duração, Reflektor é um dos discos mais longos e cheios de camadas este ano, um trabalho ousado e pretensioso (e quando não é no caso deles?), que instigou a forçar uma reflexão sobre esses dias que correm enquanto seus integrantes dançam sobre o apocalipse.

Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Reviews de Cds