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O afrobeat pode ser o que você quiser

Fela Kuti, indiscutivelmente o arquiteto do que se convencionou chamar de “afrobeat”, usava a sua música com propósitos diversos. Moldado no palco e voltado para ele, o afrobeat de Fela foi, durante toda sua vida, instrumento de resistência política na Nigéria. Perseguido pelo governo, a ponto de incendiarem a sua “comuna”, num episódio que acabou originando também a morte da sua mãe, Fela dedicou muito da sua discografia e das suas ideias para a política. Na playlist abaixo, elenco algumas dessas composições, verdadeiros marcos que tiveram impacto real e imediato na época do seu lançamento e até hoje, caso de “Zombie”.

O documentário “Finding Fela” é eficaz em mostrar, através de pesquisas históricas, depoimentos e nas palavras dos filhos, associados e do próprio Fela Kuti, como ele se tornou o “agent provocateur” por excelência na Nigéria e na África, contra os abusos do governo militar no país, contra a corrupção generalizada, contra a plutocracia. Fela incomodava, e muito. Um artista popular consciente do seu papel como ícone para uma geração, na expressão artística ou política (chegou fundar seu próprio partido, o Movement Of The People – MOP – e concorrer à presidência do país). O trailer abaixo dá um gosto, mas recomendo procurar o doc por aí (não está no Netflix, mas tem no YouTube e nos torrents da vida, claro).

São pouquíssimos os artistas com uma história de atuação política tão viva, tão entranhada no seu dia a dia quanto Fela Kuti. E com uma discografia tão absolutamente revolucionária e excelente. Fela via a si mesmo como um gênio no mesmo nível de compositores clássicos como Mozart e Beethoven, por exemplo. Nas suas próprias palavras. Com o passar do tempo, suas músicas não raro chegavam ou ultrapassavam os 30 minutos. Por quê? “Quando você olha para alguns dos maiores da história, é comum que as composições seguissem aumentando a sua duração para dar conta da complexidade de todas suas ideias”, diz.

E não só na política, mas, para absorver toda a tradição musical nigeriana e africana, o desenvolvimento do afrobeat por Fela em suas diferentes fases e bandas – a Africa 70 e a Egypt 80 – é uma verdadeira jornada no que de melhor o continente produziu. Em seus intervalos rítmicos, estruturas riquíssimas, harmonias complexas, Fela não só colocou a África definitivamente no mapa, alcançando audiências maiores, como escreveu uma discografia seminal, produzindo até o fim da vida e sendo enterrado como o legítimo herói nacional que realmente foi.

É este estofo e esta influência que pôde ser observada no palco do Instrumenta Brasília no último fim de semana. Seja por Orlando Julius, também nigeriano que teve grande influência nesse processo, ao lado de Fela e outros, seja nos shows de bandas como os mineiros do Iconili, os paulistas do Bixiga 70, os cariocas do Abayomy Afrobeat Orquestra e os nova-iorquinos do Antibalas, um dos grupos mais bem sucedidos em levar a bandeira do afrobeat adiante mundo afora.

À imagem e semelhança de Fela, todos apostam no formato big band com seção de metais, percussão e backing vocals, em maior ou menor escala, que Fela consagrou. Nenhuma com a mesma força, claro. Nenhuma com o brilhantismo de Fela, porque isso seria impossível. Mas, sendo um estilo e um som lapidado no palco (do The Shrine para o resto do planeta), todas funcionam muitíssimo bem, soando mais ou menos genéricas, mais ou menos ensaiadas e azeitadas para estar ali.

Abayomy Afrobeat Orquestra (RJ) + GOG (DF) no Instrumenta Brasília

Um vídeo publicado por @rmovinup em

O Abayomy fez um bom show, baseado no razoável disco “Abra Sua Cabeça” (deste ano) e aproveitou a deixa para fazer manifestações políticas, incitando o público. A participação do rapper GOG, maior referência do rap de Brasília, mandando suas rimas inflamadas em cima da base instrumental do Abayomy, funcionou bem.

O Antibalas é quem vai mais fundo na fonte, a ponto de ter o bom frontman e vocalista principal Duke Amayo incorporando Fela Kuti e sendo ele mesmo criado em Lagos. Com quase 20 anos de estrada nas costas, o Antibalas faz o que dele se espera: afrobeat no seu ápice, com boa variação de tempo e domínio de suas intenções, adicionando um pouco mais de funk na mistura e com mais espaço para a fanfarra generalizada. Afrobeat também é festa, afinal.

Antibalas (NY)

Um vídeo publicado por @rmovinup em

Com ótima seleção de bandas, o Instrumenta foi um evento gratuito realizado no Parque da Cidade, com patrocínio do governo local e da iniciativa privada. Apesar do bom público (e do término tarde do evento para um domingo), ainda esperava que estivesse mais cheio. No entanto, a curadoria foi feliz em mesclar artistas locais (Ted Falcon, Passo Largo, Satanique Samba Trio) com bandas de fora que fazem do afrobeat a sua referência principal.

No palco, na veia política, artística e para dançar, poucos estilos funcionam tão bem quanto ele.

Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Reviews de Shows