A verve e a história de Cohen não poderiam ser mais diferentes que a de Bob Dylan, a quem comentou recentemente sobre o prêmio Nobel “é como dar uma medalha ao Everest”. Se Dylan é o Everest, e de fato o é, Leonard Cohen tornou-se uma espécie de Farol de Alexandria para muita gente, entre as quais me incluo. Tardio na música para a média da sua época, Cohen começou a compor já depois dos 30, consequência quase natural de seus poemas e sua ficção angustiada, soturna, única sob qualquer prisma que se queira observar. Assim, Cohen também não foi uma paixão musical da adolescência, mas uma descoberta relativamente madura, da qual não se recupera jamais.
Com suas letras, sua voz, sua interpretação, sua própria história de vida, Cohen nos ensinou aquilo que precisávamos: amadurecer, perder, morrer, amar, sofrer, ressurgir, persistir, investigar, fazer troça da cretinice cotidiana. Seu existencialismo lírico e pessoal é uma espécie de guia e consolo em um mundo cada vez mais urgente, febril, obcecado com a velocidade, os prazeres instantâneos, a solução pronta na gaveta. Cohen representa o oposto disso: é o farol que nos guia para longe da demência pós-moderna ao mesmo tempo em que nos mergulha na tormenta dos sentimentos mais íntimos, das dores mais inauditas, os amores trágicos e o apocalipse domesticado. Ao contrário de Dylan, Cohen nunca foi exatamente um ícone pop, um ditador de tendências, um fenômeno midiático, nunca enfileirou hits mundo afora. O material de Cohen é outro. Sua mística, sua busca e seu estilo também.
Cada olhar mais ampliado sobre a lírica de Cohen revela mais nuances e mais camadas, mais indícios de uma mente absolutamente privilegiada, transformando o abstrato em algo que pode ser capturado no ar. “Avalanche”, um dos seus standards, do meu disco preferido dele, “Songs Of Love And Hate”, é apenas um das dezenas de exemplos de sua força descomunal: “you who wish to conquer pain / you must learn what makes me kind / the crumbs of love that you offer me / they’re the crumbs I’ve left behind / your pain is no credential here / it’s just the shadow, shadow of my wound”.
Como Bowie, que fez de seu “Blackstar” o testamento da sua morte, Leonard Cohen nos deixa aos 82 com o legado de “You Want It Darker”, recém lançado, outro recado direto de quem assumia que estava pronto para morrer, ipsis litteris: “magnified, sanctified, be thy holy name / vilified, crucified, in the human frame / a million candles burning for the help that never came / you want it darker / hineni, hineni / i’m ready, my Lord”.
No excepcional perfil publicado por David Remnick para a New Yorker em outubro, fundamental para entender a história familiar de Cohen, sua relação com o pai, com a escrita, a música, com Dylan (incluindo uma avaliação crítica formal de Dylan sobre as composições de Cohen), as namoradas, os amores e as musas (como passar incólume ao ler sua mensagem de despedida para Marianne?), suas influências e experiências religiosas diversas – o judaísmo, o budismo, o hinduísmo, a cabala e aí por diante, seu tempo como monge, a depressão desde a adolescência, a psicologia, sua vida modesta para um artista milionário, enfim, aquilo que o faz ser quem é, Leonard termina dizendo (em tradução livre):
“o que eu quero dizer é que posso ouvir a ‘Bat Kol’, a voz divina. Você ouve essa outra profunda realidade cantando para você o tempo todo, mas na maior parte do tempo você não consegue decifrá-la. Mesmo quando estava saudável, eu era sensível a este processo. Nessa fase do jogo, eu o ouço dizendo ‘Leonard, apenas faça aquilo que você tem que fazer’. É algo que me traz uma compaixão tremenda. Mais do que em qualquer época da minha vida, não ouço mais aquela voz que dizia ‘você está estragando tudo’. E isto realmente é uma benção incrível”.
Sobretudo, perdemos um dos artistas mais complexos e relevantes que a história já nos deu. Perdemos um amigo, um confidente, um cúmplice. Aquele estágio reservado aos raros, aquela relação que não pode ser emulada. Tenho certeza, entretanto, que Cohen se vai tremendamente satisfeito com tudo que construiu. E com tudo que, de forma sempre paradoxal e insinuante, jamais impositiva, com tudo que nos ensinou.