Por Saymon Nascimento
Mad Men chegou ao fim de sete temporadas neste domingo com um episódio final que será discutido por algumas décadas, ou até que o seu criador, Matthew Weiner, decida resolver o enigma apresentado na sua última cena: Don Draper escreveu o comercial da Coca-Cola? Weiner vai dar apenas uma entrevista “póstuma”, nesta quarta-feira, mas a ideia de uma conclusão para esta pergunta me parece pouco provável, porque se houve uma contribuição principal da série para a narrativa contemporânea foi a de construir um produto seriado de televisão feito inteiro de pequenos enigmas, de ação extra-campo, de um monte de coisas que acontecem enquanto não estamos vendo. Não se trata apenas das entrelinhas de cada cena vista, mas de todo um mundo de cenas que nunca vimos e nunca veremos.
Basta pensar no quanto não se sabe da vida das pessoas que habitam essa série. Um exemplo simples: dia desses, na última temporada, descobrimos que Joan foi casada duas vezes, em vez de uma. Diante disso, e de muito mais coisas muito maiores, a piada final com a Coca-Cola é uma falsa questão, é uma representação simbólica de cinismo sobre a vida de um homem e os seus abismos emocionais, e de como ele converte esses abismos não em arte, mas em publicidade. Se ele escreveu ou não o comercial, não importa, isso é historinha.
E quem se escolou (e se fascinou) com Mad Men desde a primeira temporada com certeza aprendeu a não ter esse tipo de expectativa, porque a série não se definiu apenas pelo glamour cada vez mais decadente dos anos 60, da franqueza e veracidade histórica na ilustração de preconceitos e exclusões sociais (racismo, sexismo, homofobia) ou da imensa capacidade de recriar um período por meio de suas referências culturais, como música, televisão e cinema. Mad Men não vai entrar para a história por causa disso, e sim pela sua estrutura.
Em vez de uma grande narrativa em capítulos que se fecha numa temporada, como The Wire, ou de uma longa e única história fechada que passa de uma temporada a outra como se fossem capítulos seguidos – como Breaking Bad -, Mad Men surgiu num fomato completamente diferente, construindo os seus episódios como uma série de contos curtos sobre as mesmas pessoas, recheados de elementos que não fazem progredir a “história”.
A cada semana, encontramos parte daquele grupo e vimos cenas que nos fazem entender melhor aquelas pessoas e nos despedimos, voltando-as encontrá-las no mês seguinte (em geral, o intervalo narrativo entre um episódio e outro é de 30 dias), ou meses depois, se o tal personagem sumir por uns tempos. Ou nunca mais, como Salvatore Romano. Preenchendo esses buracos, a vida, em elipses que, literariamente, chegam a me lembrar coisas bem distante no tempo, como Henry James. Óbvio que é uma escolha inicialmente frustrante para quem tem certas expectativas em relação à ficção seriada televisiva, e não faltaram dedos em riste a chamar a série de “chata”, “entediante” e “aborrecida”.
Como o principal elemento de conexão entre a audiência e a série se tornaram os seus fascinantes personagens, e os contos de Matthew Weiner frequentemente mostraram os tais personagens cometendo os mesmos erros – atrasando a narrativa, mas sendo mais verdadeiros, fiéis a si mesmos – uma outra dissidência passou a debandar em peso a partir da metade da série, a horda dos fartos de repetição. A estes, resta dizer que tiveram a paciência de ver uma maneira de contar a história na qual a história não é importante, mas voltaram à estaca zero ao exigir reviravoltas e mudanças de personalidade a quem, como boa parte das pessoas, não consegue aprender muita coisa com a vida, ou que mais se adapta a essas mudanças sem deixar de, internamente, ter o mesmo caráter (aqui no sentido mais amplo, não moral da coisa).
Curiosamente, embora as primeiras temporadas sejam as mais premiadas e bem aceitas – e são, de fato, maravilhosas – como projeto depurado e decantado, a série se realiza na ladeira abaixo dos anos 60, do quinto ano em diante, quando os diálogos ficam mais frontais e francos, mas todas as expectativas em relação àquele grupo de pessoas já estão superadas, e só resta a empatia e o afeto construído para seguir viagem com eles rumo à virada da década.
Por causa disso, também, é que todos finais de temporada parecem encerramentos – muitas vezes, até episódios intermediários dão a sensação de que tudo poderia acabar naquele momento. Como vimos neste finale, as histórias das pessoas não acabam em movimentos narrativos. Os criadores das narrativas é que abandonam as suas personagens, que continuam vivas – seja numa empresa própria, como Joan, esperando ser uma diretora de criação em 1980, esperando a morte chegar com um cigarro na boca, como Betty (uma escolha exemplar da falta de interesse em plot, aliás, com todas as cenas fundamentais de um conflito que qualquer série exploraria sendo simplesmente ignoradas), ou tendo uma ideia genial para um comercial de refrigerante, como Don.
Claro, apesar de ser secundária, há uma história seguindo como um fluxo por dentro dos episódios, história que eventualmente assumiu o primeiro plano em viradas espetaculares e inesperadas (até porque ninguém vive numa montanha russa), mas ela é tão difusa que, mesmo nestes momentos, só interessa como aquelas pessoas vão reagir a essas mudanças.
Isto se reflete também na relação desse grupo com a História, com H maiúsculo. Apesar de estarem todas muito perto dos terremotos dos anos 60, eles só parecem sentir o chão vibrar a uma distância segura, algum tempo depois, ocupados demais com as próprias vidas para perceber que, ao fim de dez anos, o mundo lá fora é outro. A morte dos Kennedy e de Martin Luther King ou a chegada do homem à Lua é algo que se vê pela televisão, como todo mundo. Stonewall sequer existiu. Bom, os Beatles existiram, e com força, mas eles eram os Beatles.
Diante de todas essas escolhas, algumas delas bem alienantes, ainda me causa algum espanto como um programa tão exigente tornou-se tão influente. Parece um movimento de cima para baixo, uma programa que venceu o abrigo de um público que soube disseminá-lo.
Curiosamente, Mad Men tem sido incluída numa vala comum da era dourada da televisão americana, em geral, em oposição a um cinema hollywoodiano que ainda negligenciando o público adulto. No entanto, mesmo dentro dele bolo de séries premiadas protagonizadas por anti-heróis, todas com O Poderoso Chefão como padrão de qualidade narrativa, Mad Men parece um alien. Quando diretores pessimistas com o cinema incluem Mad Men na lista de séries que provam como a televisão é muito melhor para contar uma história, estão fazendo um julgamento distraído.
O épico de Matthew Weiner é interior, e, embora já tenho dado suas piscadas de olho fortes para o filme de Coppola (o pitch da Jaguar, claro), as ambições são outras, e bem mais elevadas. É uma narrativa neural, sem centro, que marca passo ao mesmo tempo que se expande também pelo tour de force estético que isso representa – e, até por isso, se dá a liberdade de chamar a atenção para ocasionais episódios radicais, sejam de linearidade embaralhada, seja regados a anfetaminas, ou com explosões de sapateado e números musicais. Até o fim, que bom, o seu criador jamais teve medo do espectador, quem quer que ele seja.