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Matrix – 10 Anos Depois

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Exatamente 10 anos atrás, num 31 de março, Matrix era lançado oficialmente nos Estados Unidos. Neste tempo, a película mudou profundamente a cultura pop, redefinindo muito dos games, do cinema, da “filosofia” na arte de massa, etc. O texto que apresento a seguir foi escrito por mim em 2005. Pensado para uma versão impressa, ele nunca foi publicado, salvo para alguns amigos próximos. Ele é uma espécie de introdução que elaborei, tentando abarcar os principais pontos da obra. A princípio, ele está incompleto. Deixei-o guardado num “work in progress” esse tempo todo. Não alterei uma vírgula, da versão de 2005, para esta que apresento agora (com a óbvia diferença de que, hoje, o filme está mais velho). Quem escreve pode imaginar o que quero ressaltar com isso.

Matrix – 10 Anos Depois

Por Maurício Angelo em Maio de 2005

 

 

(Obs: O texto a seguir vai muito além da trilogia Matrix, vai além do que os irmãos Wachowsky puderam mostrar, ele cai num abismo sem fim de considerações, divagações e postulados decorrentes da evidente mistura de filosofia, mangá, sci-fi, cyberpunk, literatura, história, mitos, artes marciais, religiões e paradoxos contidos. Talvez tudo isto não passe de bobagem, de um exercício prolixo de imaginação. Talvez seja agregar valor excessivo a uma obra possivelmente despretensiosa. De superestimar este mundo criado. O que se segue é uma mistura de crônica, crítica, trabalho e artigo. Liberdade criativa em favor da qualidade. Peço que perdoe-me pela idiossincrasia.)

Analisado agora, dez anos após o seu lançamento, o filme Matrix – idealização dos irmãos Larry e Andy Wachowsky – conserva toda sua significância inicial e seu caráter revolucionário. E um dos melhores parâmetros que podemos ter para identificar uma obra-prima é este: a forma indelével de seu relacionamento com o tempo.

Mas o que transforma um blockbuster em algo tão fascinante? Como um filme concebido no seio do capitalismo autofágico, tendo quase 150 milhões de dólares para sua produção financiada por uma grande empresa estadunidense, a Warner Bros., um dos símbolos da indústria cultural, pode arrebatar a atenção de intelectuais dos mais variados níveis e origens? A sinopse da história por favor:

“A Matrix está em todo lugar, à nossa volta, até aqui, onde você está. Você pode vê-la na janela, você pode vê-la na televisão. Você a sente quando está trabalhando, ou na igreja, ou quando paga os impostos. É o mundo que foi colocado em frente aos seus olhos para esconder a verdade. Que verdade? Que você é um escravo. Que você, como qualquer outro, nasceu preso, trancafiado num cárcere sem poder respirar, sentir gosto ou tocar. Uma prisão mental. Que todos nascemos em casulos em forma de úteros e vivemos em um estado de letargia inconsciente e totalmente abstraídos numa realidade falsa. Dentro destes casulos, cada ser humano é plugado ao sistema, recebendo diversos cabos umbilicais espalhados pelo corpo, informações sensoriais que criam a ilusão de estarmos vivendo em 1999, no auge da civilização humana. Mas o ano é 2199 e as máquinas venceram a guerra, transformando a energia vital humana em combustível. Aprisionaram os homens em máquinas de coma e absorvem sua vitalidade inventando uma realidade mentira, que apenas serve para manter todos os homens em seus lugares, quietos e vegetais. Gerações inteiras foram sacrificadas como safras agrícolas. Mas alguém craqueou o sistema.” [1]

O grande segredo de Matrix foi fazer o público pensar. Mesmo sendo um blockbuster, mesmo arrastando milhões de pessoas às salas de cinema mundo afora, ele conseguiu não ser pop, ou seja, não há nele a efemeridade costumeira a produções do tipo. E quando a grande massa, que não está acostumada a pensar, é obrigada a fazê-lo – e Matrix fá-lo de forma deveras eficaz – algum tipo de revolução acontece.

E este objetivo é atingido da forma mais ardilosa possível. Os Wachowsky criaram-se consumindo filosofia, mangás, todo tipo de cultura oriental, arte obscura, “nerdices” das mais variadas naturezas, são outsiders e agem como tais. Mas para dar vazão a todas suas pretensões e criar um filme que pudesse retratar o que almejavam de forma completa era preciso capital, muito capital, capital que só a máquina oferece. Neste sentido, Matrix é uma obra criada pela máquina, que sustenta suas engrenagens, mas no fim se volta contra ela. Em nossos paradoxos cotidianos, enganar o sistema é a melhor forma de combatê-lo.

Não há nada em Matrix que seja gratuito. Tudo tem um significado, um sentido, uma razão de ser, uma colocação apropriada, tudo é metafórico, paradoxal. O filme é filosofia pura, do início ao fim e sua concepção estética e seu enredo são totalmente cyberpunk. O cyberpunk é um tipo de ficção cientifica que utiliza elementos de romances policiais, filmes noir, desenhos animados japoneses e prosa pós-moderna. Também originou todo um movimento social com características próprias. O cyberpunk age como crítica do mundo digital que começou a se desenvolver nas duas últimas décadas do século XX, em vez da utopia tradicional do sci-fi, seu mundo é distópico, antitético, sombrio, niilista, totalitário, mítico e filosófico. Exacerba e extrapola as possibilidades digitais – levadas às últimas conseqüências – tentando resgatar a sanidade através das figuras de renegados e rebeldes que lutam contra o sistema impingido.

O pai do cyberpunk foi William Gibson, que lançou em 1984 o livro que é considerado o marco inicial do movimento, “Neuromancer”. <<<Gibson também foi quem inventou o neologismo “cyberespaço”, descrito em “Neuromancer” como uma “alucinação consensual” da mente, alcançada através da técnica do “jack in” (conectar o cérebro através de um plugue implantado na nuca). Cyberespaço virou sinônimo para internet e para a intrincada relação entre o virtual e o real no mundo contemporâneo.

A crença no progresso científico e num futuro melhor para a humanidade através das possibilidades oferecidas pela tecnologia seria uma característica da modernidade, presente em autores da virada do século XIX para o XX tais como Júlio Verne e H. G. Wells. Essa visão otimista sobre a ciência moderna começa a ser deslocada nas obras de Aldous Huxley (que publica “Admirável Mundo Novo” logo após a Primeira Guerra Mundial e a crise econômica norte-americana de 1929) e George Orwell (que lança “1984” após a Segunda Guerra Mundial). O otimismo começa a ceder lugar a uma visão distópica, pessimista do futuro, que se torna característica da ficção científica a partir de então, culminando na pós-modernidade do cyberpunk.>>> [2]

O hacker – como ser que burla o sistema para manipulá-lo – o ciborgue (representando a ligação física do homem à máquina e a crescente perda de sua identidade natural), o dualismo entre corpo e mente que possuem uma relação intrínseca de causa e efeito (o que acontece aos personagens da literatura cyberpunk no mundo virtual – sendo que estes estão ligados a ele pela mente – implica reações também em sua forma carnal) e a idéia da transcendência da carne são todas características do peculiar mundo vislumbrado de início por William Gibson, claro que derivado de todo seu background cultural. E Matrix (o próprio termo também é criação de Gibson, sendo o ambiente de realidade virtual onde boa parte da ação do livro se passa) suga todo o conceito e a estética cyberpunk para sua perspectiva, para muitos o filme seria um plágio descarado de “Neuromancer”. Gibson aliás, amou o filme, segundo seu depoimento:

“Eu estava com medo de ver este filme. Eu estava com medo porque ele era muito popular, e amigos diziam que era muito similar ao meu trabalho. Também porque o protagonista é Keanu Reeves, que já estrelou um filme que escrevi. Eu estava com medo de ficar com inveja ou de sentir pena dos criadores do filme, ou de simplesmente ficar infeliz. Eu tinha visto cópias do roteiro, e não pensei que prometiam algo grande, e Hollywood geralmente faz um trabalho muito ruim quando o tema é realidade virtual. O filme esteve em cartaz, nos Estados Unidos, por várias semanas. Quando eu finalmente o vi, só fiz isso porque estava sozinho numa suíte num hotel litorâneo, em Santa Monica, e estava escuro, frio e chovendo. Meu grande amigo Roger veio me salvar, e insistiu que eu gostaria de Matrix. Ele me levou embora dentro da chuva e do seu Volkswagen Rabbit. Eu soube então que gostaria de Matrix.

Eu gostei dele imediatamente, e gostei mais ainda conforme a história se desenvolvia. Senti um senso de excitação que eu não sentia, assistindo a um filme de ficção cientifica há muito tempo. O cínico em mim continuou esperando estar desapontado; esperando pelo movimento errado, pela explicação besta, esperando o estrago que Hollywood geralmente faz a esse tipo de filme. Ele nunca veio. E quando Neo voa no ar no final, eu fui com ele num momento inocente de grande prazer que eu não sentia há muito tempo. Quando eu retornei a Vancouver, imediatamente levei minha filha de 15 anos para ver Matrix. Ela tinha a mesma má vontade. Ela amou o filme.

Ela amou o filme, eu acho, porque é uma coisa muito especial; um grande, musculoso filme cheio de efeitos, que é incrivelmente generoso com seu estilo visual, se preocupando em nunca deixar de fazer sentido (de um jeito que um escritor de fc deve exigir que a fc faça sentido), e, o mais importante de tudo, que tem um bom coração. Como eu o interpreto, Matrix é um filme sobre se tornar consciente. Ele nos conta que se tornar consciente e ter coragem de procurar aquilo que é mais real, é a sua própria (e definitiva) recompensa. Quando Morpheus oferece a Neo a escolha entre duas pílulas, e Neo escolhe (sem saber aonde ela irá leva-lo, como de fato nós nunca sabemos) conscientemente, nós embarcamos numa busca mais essencial que tudo oferecido por Star Wars. O objetivo definitivo de Matrix não é a Força e sim o Real. Quando a figura do filme que representa Judas trai os heróis, ele o faz para retornar à ilusão e à negação, que são a falsa realidade que Neo luta para escapar e extinguir. Os críticos norte-americanos interpretaram isso em termos cristãos, vendo Neo como uma representação de Cristo, mas eu prefiro vê-lo de algum jeito mais universal: um herói do Real. Eu normalmente tenho um bom número de problemas com a idéia de herói, mas nesse caso não: o Neo de Keanu é o meu herói de ficção cientifica predileto de todos tempos, sem dúvida.” [3]

Outro autor que teve grande importância para a criação de Matrix foi o filósofo francês Jean Baudrillard. Ele inclusive é citado de forma explícita no filme quando Neo abre um livro (“Simulacros e Simulação” de Baudrillard) de fundo falso onde está escondido material dele. Mais especificamente, o capítulo que o filme mostra é o último, intitulado “Sobre o Niilismo”. Uma boa passagem que podemos citar desta parte é esta: “as aparências, essas, são imortais, invulneráveis ao próprio niilismo do sentido ou do não-sentido. É aí que começa a sedução”. E também: “o campo aberto é o da simulação no sentido cibernético, isto é, o da manipulação em todos os sentidos destes modelos (cenários, realização de situações simuladas, etc…) mas então nada distingue esta operação da gestão e da própria operação do real: já não há ficção.”

“Simulacros e Simulação” – de 1981 – é um livro sobre as situações que os habitantes de uma sociedade particular vivem em um aparente estado de utopia, quando na verdade o contentamento é uma ilusão. Keanu Reeves leu o livro, e citou-o incansavelmente em entrevistas para promoção de “Matrix”.

Jean Baudrillard, de 75 anos, divulga idéias de cunho turboniilista, apocalíptico e diz: “a realidade já não existe e vivemos um permanente e conspiratório espetáculo de mídia”, decreta-se então o fim dos tempos, auto-intitula-seum “dissidente da verdade”.

O filósofo, inclusive, foi convidado para dar assessoria ao prosseguimento da trilogia e falou sobre isso em entrevista à revista Época de 7 de julho de 2003:

“Pergunta: O senhor gostou do filme? Resposta: É uma produção divertida, repleta de efeitos especiais, só que muito metafórica. Os irmãos Wachowski são bons no que fazem. Keanu Reeves também tem me citado em muitas ocasiões, só que eu não tenho certeza de que ele captou meu pensamento. O fato, porém, é que Matrix faz uma leitura ingênua da relação entre ilusão e realidade. Os diretores se basearam em meu livro Simulacros e Simulação, mas não o entenderam. Prefiro filmes como Truman Show e Cidade dos Sonhos, cujos realizadores perceberam que a diferença entre uma coisa e outra é menos evidente. Nos dois filmes, minhas idéias estão mais bem aplicadas. Os Wachowskis me chamaram para prestar uma assessoria filosófica para Matrix Reloaded e Matrix Revolutions, mas não aceitei o convite. Como poderia? Não tenho nada a ver com kung fu. Meu trabalho é discutir idéias em ambientes apropriados para essa atividade.”

Baudrillard realmente não poderia ter gostado de Matrix e deixa escapar todo seu preconceito de intelectual tradicional. Não poderia ter gostado porque o filme, primeiro de tudo, não é uma representação fidedigna de sua obra, nem deveria ser, “Simulacros e Simulação” foi apenas uma das influências que constituem o turbilhão de referências matrixianas. Junte-se a isso o já citado universo cyberpunk, toda uma carga de cultura oriental (desenhos – especialmente os clássicos Akira, Ghost In The Shell e Neon Genesis Evangelion – filmes, comportamento, artes marciais), filosofia das mais diversas eras e aspectos religiosos heterogêneos. Matrix foi a materialização dos sonhos de milhares de nerds ao longo da história, e Baudrillard certamente não é um nerd, sequer um intelectual cool, mas sim um convicto filósofo destrutivista pós-moderno (utilizemos o termo apenas para facilitar a comunicação) envolto numa casca de conservadorismo. Sua última colocação: “Não tenho nada a ver com kung fu. Meu trabalho é discutir idéias em ambientes apropriados para essa atividade.” Revela uma grosseira falta de respeito, um tradicionalismo barato e pior, uma gritante ausência da percepção de uma oportunidade. Baudrillard não quer se misturar à massa – a sua idéia arquetípica de massa – para explanar seus conceitos, só aceita o ambiente clássico (o “ideal”, o mais “apropriado” segundo ele) de universidades, simpósios, convenções, congressos, bienais, ele só quer o público intelectual, o típico nicho de mercado ao qual ele se dirige. Falta-lhe a percepção da natureza blockbuster-outsider de Matrix, a evidência de que através do filme ele teria a chance de atingir um público infinitamente maior do que o costumeiro e conseqüentemente, a revolução de suas idéias no imaginário popular teria finalmente o efeito devastador almejado por sua pessoa. Faltou-lhe permitir-se sair da vida contemplativa para a ativa, de deixar-se ser triturado pela máquina para emperrar suas engrenagens e destruí-la. Em suma, a ausência baudrillariana é derivada do apego excessivo à sua missão filosófica “de dizer o que é o mundo como se estivesse fora dele, explicando e discorrendo de forma direta” para abraçar temporariamente a causa dos escritores, “de exemplificar e demonstrar a partir de dentro, atuando com o seu sangue” (*), negando-se a utilizar o turvamento, a metáfora, que tanto o incomodou.

Desde o início Matrix é diferente. Somos surpreendidos por uma trama instigante, dark, impiedosa, densa, frenética. Numa das primeiras cenas, Neo (o próprio nome – novo – como todos sabem, também é um anagrama de One – um – e de Eon- variante de Aeon – “eterno”) está deitado em sua cama, exausto e a música que toca de fundo é Dissolved Girl, do álbum Mezzanine, do grupo britânico Massive Attack, que diz: “Pois eu sinto como se eu estivesse, sinto como se eu já estivesse estado aqui/ E você não é meu salvador, mesmo assim, eu não vou/ Parece com algo que eu já fiz antes, eu poderia fingir, mas ainda assim quereria mais”. Que pode ser interpretado como a representação do sonho de Neo no momento, um presságio e logo após, quando Choi e DuJour (“choix du jour”, a escolha do dia, em francês) vêm visitar Neo, ele é saudado com frases como “Aleluia! Você é o meu salvador! Meu Jesus Cristo pessoal! Você não existe!” – outro presságio. Nosso herói então desperta, e faz a sua escolha capital daquele dia, ele “segue o coelho branco” – como a inocente Alice de Lewis Carrol – fazendo o que lhe disse a dica da tela do seu pc, entrega-se a voz do desconhecido. Mesmo não sabendo nem quem, o que ou de onde veio aquela mensagem, Neo simplesmente abraça seu destino, tenta a sua sorte, começa (sem saber) a tomar a pílula azul, quer respostas para suas dúvidas, ratificando o que diz Trinity ao encontrá-lo na boate: “É a pergunta que nos impulsiona, Neo. Foi a pergunta que te trouxe aqui” – afirmação profundamente aristotélica.

E porquê Neo deixa-se levar por impulsos tão arbitrários numa primeira vista? Porque, segundo Rosseau em sua romântica novela “A Nova Heloísa”, de 1761: “a vida metropolitana é como uma permanente colisão de grupos e conluios, um contínuo fluxo e refluxo de opiniões conflititivas. (…) Todos se colocam freqüentemente em contradição consigo mesmos (…) e tudo é absurdo, mas nada é chocante, porque todos se acostumam a tudo (…) um mundo em que o bom, o mau, o belo, o feio, a verdade, a virtude, têm uma existência apenas local e limitada (…) eu começo a sentir a embriaguez a que essa vida agitada e tumultuosa me condena. Com tal quantidade de objetos desfilando diante de meus olhos, eu vou ficando aturdido. De todas as coisas que me atraem, nenhuma toca o meu coração, embora todas juntas perturbem meus sentimentos, de modo a fazer que eu esqueça o que sou e qual meu lugar. (…) vejo apenas fantasmas que rondam meus olhos e desaparecem assim que os tento agarrar”.

Ou seja, diante do presente e diário caos, desta evasão moderna tão presente na vida de Neo, ele não tem nada a perder, faz tanto sentido ficar em casa quanto em sair, o único motivo, a única razão, o único impulso que ele têm para isso é a dúvida, a pergunta. A pergunta que é a base de toda a filosofia, o início, o meio e o fim dela, a eterna sístole e diástole da síntese hegeliana.

O onírico é tão forte em Matrix – a começar por Morpheus, que é o deus grego do sonho e Nabucodonosor, um rei bíblico atormentado por sonhos – que podemos ter como metáforas inúmeras referências do filme. A começar pela própria inserção dos personagens do mundo real para a Matrix, o que se dá através da ligação mental, do fechar dos olhos, do repouso do corpo, através, noutro sentido, do sonho. E transportando-se eles se encontram num mundo fictício, no mundo dos sonhos, mas que tem efeitos diretos no mundo real (Freud sorri neste momento). A Matrix então seria um grande pesadelo? Um pesadelo palpável? E o que é o real na Matrix? Ao acordarem – voltarem da Matrix – a estética do mundo real é infinitamente mais devastadora e pungente do que a ficção anterior. Bela metáfora de nossa vida.

Ao acordamos do mundo encantado da mídia, do sistema, das convenções sociais, das armadilhas que nos condicionam desde o início de nossa existência, ou seja, ao atingirmos a maturidade e o desabrochar intelectual, aí, pela primeira vez, temos contato com o mundo real. O mundo que sempre esteve diante dos nossos olhos mas que nunca tínhamos conseguido enxergar. E este mundo real é inescapavelmente mais árido, doloroso, niilista e derrotista do que gostaríamos de admitir. Assim como em Matrix a realidade é apocalíptica, encontramo-nos no “deserto do real”.

Isto porque “esgotamos as mais profundas e estimulantes possibilidades, obliterou-se a necessidade de pensar. Para quê pensar se tudo já está pronto? Para quê narrar se a informação cotidiana é o que importa? Nossa mente está impregnada de incomensuráveis figuras, conceitos e esquemas esperando para vir à tona, não a estimulamos, apenas acessamos o que nela já se encontra. Tudo foi escancarado, reproduzido e revelado, absorvermos mesmo sem querer, absorvermos porque não podemos escapar disto. Acabamos com o sexo, a literatura, o cinema, a ironia, o romantismo, o mistério, a sublimidade, os gênios, a esperança, tudo é vulgar, rasteiro e medíocre. Nos tornamos irascíveis, limitados, impacientes, hediondos, esquematizados. Não guardamos mais nenhuma surpresa dentro de nós, o sistema alcança seu nível mais intenso de penetração, de força. Esse quadro crescente de esterilidade que explodiu no século XX vê um amadurecimento sem precedentes em nossa época, praticamente nada mais pode pará-lo e os candidatos a isso se tornam mais escassos a cada dia. Que o ser humano é uma raça em extinção todos sabemos, além disso, a inteligência e a isenção necessárias encontram-se em sua fase terminal, quase imperceptível.

(…) Assistimos a extinção da idiossincrasia em virtude do avanço da cultura de massa. Sufocados pelo capital somos incapazes de criar, de obtermos isenção deste meio implacável para o desabrochar do indivíduo e vivemos quase exclusivamente do passado. Nossa esterilidade comunicacional está deixando de ser conseqüência do meio e tornando-se inata, encontrando-se em níveis inaceitáveis. Somos matéria inanimada que não interfere grandemente no macrocosmo, mas antes, contenta-se somente em fazer parte dele. Com o macro definhando, conseqüentemente o microcosmo é aniquilado, sobrando apenas a lembrança de glórias longínquas e a ulterioridade da derrocada final.” [4]

Quando Neo encontra-se com o oráculo, a música de fundo é “I’m Beginning to See the Light” (Estou Começando a Ver a Luz) de Duke Ellington. O Oráculo é uma referência direta ao Oráculo de Delfos, da mitologia grega. Delfos quer dizer “útero” em grego. E o que está sendo gerado é a nossa trilha, nossa escapatória, são as possibilidades que temos de enfrentar os “inimigos”. Pois como nosso querido Thomas Anderson irá descobrir mais adiante, “há uma diferença entre conhecer o caminho e percorrer o caminho”.

Neo – agora indo subitamente para a trama fictícia da produção cinematográfica – representa esta esperança, este salvador, é a evocação desesperadora do mito, do herói intocável que vêm nos salvar, resgatar e guiar. A Matrix, como é falado de modo suficientemente claro no filme, “é um sistema (…) e devemos combatê-lo”. A última ação de Neo na película é justamente empreender este dever que ele têm como Escolhido, como salvador, super-homem, este deus mortal. Ele alerta os que estão presos na Matrix, sob o duro regime das máquinas, que há um outro caminho, e eles podem escolher. Escolha é um tema recorrente no filme, é a matéria basal que move as ações dos protagonistas, sendo que estes, obviamente, sofrem diretamente as conseqüências de suas escolhas. Nada mais idiossincrático que isso.

No fim, os Wachowsky jogam a responsabilidade no colo do telespectador. Transferem toda a carga dramática e existencial de suas duas horas de projeção diretamente na alma de seu público. Mostram os dois lados da moeda e os intima a fazer alguma coisa. Dizem de modo incisivo: a escolha é sua, o que irás fazer? Em que mundo vai querer viver? Que tipo de pessoa se tornará daqui por diante? Como pretende atuar ativamente na máquina?

Fica o vácuo, e as lacunas devem ser preenchidas de modo individual.

A escolha é sua, é sempre sua.

Referências:

[1] e [3] : Revista Play, número 1, dezembro de 2002, páginas 26,27,30 e 31, editora Conrad.

[4] : in Maurício Gomes Angelo, artigo “Bem Vindo ao Deserto”, Duplipensar.net, Maio 2005.

* – Janus Mazursky, filósofo, meu amigo, São Paulo, Brasil, 2005.

Várias curiosidades retiradas do site (www.imdb.com).

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