A afirmação do início desse texto é consciente. Dylan é o maior artista da música do século XX. E que soube permanecer extremamente relevante e ativo na virada para o século XXI. Compondo discos excepcionais como “Time Out Of Mind” (1997), “Love And Theft” (2001) e “Modern Times” (2006). Uma trinca que o trouxe novamente ao melhor da forma, reinventando a carreira e fincando sua inestimável influência.
É inevitável falar de Dylan sem usar hipérboles: todas verdadeiras, todas merecidas. Nenhum outro artista contempla uma história tão rica, uma complexidade e uma miríade de abordagens possíveis. Dylan mudou e influenciou absolutamente tudo na cultura pop depois dele. É, fácil, o mais pop e o mais hermético dos compositores. Nenhum outro soube congregar duas características aparentemente contraditórias. Nenhum outro conseguiu extrair tanto e de forma tão única o espírito do nosso tempo. Dylan é o trovador urbano por excelência. Um dos maiores escritores da história, por assim dizer.
E conseguiu isto trabalhando suas letras dentro das limitações, do padrão e da adequação necessária para uma canção. E o fez com uma qualidade musical extraordinária. A essência da nossa época passa necessariamente por Dylan. E, por isso, é impossível chegar num show dele sem uma tonelada de experiências prévias, de informação, da própria relação com a sua obra e com a abordagem que outros fizeram dela: Robert Shelton, na biografia definitiva e obrigatória, Scorsese, Todd Haynes, etc, etc. A lista é infinita. Como é infinita as possibilidades e a relação de cada um com Dylan.
Portanto, quando uma das maiores figuras da história contemporânea sobe ao palco sem qualquer alarde e sem qualquer atraso, você só pode mirar com reverência e estupefação. Para azar dos brasilienses, com o pior som da turnê. Além de estarmos num ginásio (Nilson Nelson), o que já prejudica enormemente qualquer show, a qualidade em si do tratamento dado foi horrorosa. Melhorando da metade pro final e ficando até “boa” em alguns momentos. Dylan, claro, como já registrado e comentando antes, canta de maneira praticamente ininteligível. Muda arranjos, deixando algumas músicas irreconhecíveis.
Mesmo assim, dá pra ver que esse senhor de 70 anos está feliz no palco. Mais que isso, está entregando o seu melhor. E a banda, afiada, carregando a mão. É um Dylan pesado, intenso, despejando cavalos de batalha do passado e do presente: “Leopard Skin Pill-Box Hat”, “Tangled Up In Blue”, “Don’t Think Twice, It’s Alright”, “Beyond Here Lies Nothin'” (do também ótimo “Together Through Life”, de 2009) e “Simple Twist Of Fate”, tudo isso ainda na primeira metade do show.
A banda – Stu Kimball e Charlie Sexton (guitarras), Donnie Herron (pedal / lap steel), Tony Garnier (baixo) e George Receli (bateria) – acompanha vigorosamente os passos do maestro, que se reveza na guitarra, harmonica e piano. Sem papo com o público e sem bajulações baratas com o país (bandeiras, elogios, etc), regra de 99% dos artistas estrangeiros que pintam por aqui, Dylan se resume à um misé-en-scene básico, com as sombras dos músicos projetadas na cortina do fundo do palco e uma atuação crua, carregada de punch incomum para um ícone da sua idade.
O ato final foi digno de crueldade: “A Hard Rain A-Gonna Fall”, “Highway 61 Revisited” (uma paulada), “Ballad Of A Thin Man”, a aguardada “Like A Rolling Stone”, considerada por muitos a maior canção da história, “All Along The Watchtower” e o improvável bis (que não aconteceu no Rio de Janeiro), com “Rainy Day Women #12 & 35”. Algumas das mais significativas composições já criadas. Sem falar em “Thunder On The Mountain” e “Blind Willie McTell”.
Dylan se dá ao direto de ignorar alguns dos seus maiores hits, incontáveis. Quem foi atrás de “Knockin On Heaven’s Door”, “The Times They Are A Changin'”, “Blowin’ In The Wind”, “It’s All Over Now, Baby Blue”, “I Shall Be Released”, “Lay Lady Lay” e tantas outras, ficou só na vontade. Com um repertório entre os melhores e mais variados conhecidos, Dylan pode montar o set-list que quiser. E manter a qualidade de todos eles. Poucos artistas – talvez apenas ele – podem montar 10, 15 set-list’s diferentes, só com músicas exclusivas em cada um, e todos serem ótimos e relevantes.
Mesmo com todas as limitações do local, do som e, em última instância, da própria idade de Dylan e sua voz castigada, a única sensação depois de 1 hora e quarenta minutos de show é que foi um privilégio. Um privilégio inestimável estar ali.