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David Gilmour: as coisas como elas são

Por Maurício Angelo

Falar de um ícone é sempre uma armadilha perigosa: 50 anos de carreira não são 5 dias. 50 anos de carreira desde os anos 60, a década que mudou o jogo pra sempre, menos ainda. 50 anos de carreira de alguém que foi parte fundamental dessa mudança, então, beira o impossível. Mas sou da teoria de que não existem vacas sagradas. E a história do Pink Floyd e de David Gilmour prova exatamente isso.

Sou suspeito, claro, mas, para além da postura do fã, da história, da oportunidade, a admiração, o privilégio, tem algo que sempre odiei: o fã acéfalo, em qualquer circunstância. O fanático que adora certa coisa como se aquilo fosse o primeiro e último sentido da sua vida. Vale muito para bandas e artistas em geral. Vale para o futebol, vale para uma enormidade de situações. David Gilmour é um dos maiores, melhores e mais originais guitarristas de todos os tempos. Um cara que entrou no Pink Floyd ainda no início, mesmo que não fizesse parte da formação original e mudou tudo. Um cara que criou uma identidade absolutamente única. Alguém que é parte fundamental na transformação da sonoridade do grupo e um dos grandes responsáveis, ao lado de Roger Waters, seu eterno parceiro, amigo e antagônico, por tornar o Pink Floyd esse mastodonte do rock. Uma das bandas mais influentes e que mais venderam na história da música. Além: venderam muitíssimo praticando uma música muito longe dos padrões dos outros líderes da indústria.

Inventaram o rock progressivo. Sim. Do mesmo modo que o Black Sabbath, em última instância, criou o metal. O Pink Floyd, em 1967 (e mesmo um pouco antes disso), criou o rock progressivo como o conhecemos. No seio, é verdade, de dezenas de outras bandas que mudaram a face da música pra sempre, pra melhor e pra pior: caso de King Crimson, Genesis, Yes e tantos outros. O progressivo, posteriormente símbolo da pompa e ostentação que precisava ser destruída pelo punk e pelo novo rock que surgiu em meados dos anos 70, se desdobrou em dezenas de sub-estilos, cada um com sua parcela de influência e de culpa. Vide o krautrock, space rock, RIO, zeuhl, etc. O progressivo, primo rico, arrogante e acadêmico do rock, tem muito a oferecer. O progressivo também pode ser pop, como provou o Pink Floyd com “The Dark Side Of The Moon”, o TERCEIRO DISCO MAIS VENDIDO DA HISTÓRIA DA MÚSICA, que tem como estimativas, por baixo, 45 milhões de cópias vendidas.

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O disco que catapultou a banda a outro patamar. Que redefiniu a história da música no século XX e que começou a ruir os egos e as tensões dentro da própria banda. Como não haveria de ser? Depois de Dark Side veio “Wish You Were Here”, a ressaca do sucesso estrondoso. “Bem-vindo, meu filho, bem vindo à máquina / tá tudo certo / a gente te ensinou o que sonhar / você sonhou em ser uma grande estrela, tocando a guitarra principal, então bem-vindo à máquina” cantam em “Welcome To The Machine”.

“Wish You Were Here”, a música e o disco, é o último trabalho do Pink Floyd enquanto Waters, Gilmour, Wright, Mason, assombrados pela fama, pelas vendas e pela presença fantasmagórica de Syd Barrett, mentor inicial da banda que se afundou nas drogas e lançou bons discos solos até se perder de vez. “Queria Que Você Estivesse Aqui” e sua lendária letra e história da aparição de Syd nos estúdios totalmente desfigurado, gordo, careca, destruído, é mesmo verdade. “Shine On You Crazy Diamond”, igualmente das músicas mais belas e marcantes de todos os tempos, também. O disco todo é assombrado por Syd Barrett. É o ponto de tensão mais evidente entre a banda universitária e de vanguarda dos primeiros anos catapultada ao estrelato mundial por personalidades absolutamente brilhantes e conflitivas, caso de Barrett, Waters e Gilmour e, não menos, Rick Wright e Nick Mason.

“Animals” ainda é brilhante, mesmo que Waters tome conta de tudo. Contém “Dogs”, das minhas músicas favoritas da banda (infelizmente não tocada por Gilmour, que divide os vocais no original) e uma aula do início ao fim. “The Wall”, já falei sobre ele no show do Waters específico aqui. The Wall é a manifestação última do incômodo que o Floyd viveu do estouro em Dark Side… até então. O muro criado entre a banda e o público. A distância proporcionada pelos grandes estádios que passaram a se apresentar. Algo inevitável e que acompanha o grupo até hoje, claro. O muro que criamos nas nossas relações com a sociedade, a escola, a política, o sexo, com nós mesmos.

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E aí sobra a treta judicial entre Waters e Gilmour. A longa disputa que fez com que Gilmour e cia tivessem os direitos sobre o nome Pink Floyd e lançassem o primeiro disco da banda pós-ruptura somente em 1987, o problemático, megalomaníaco e sintomático “A Momentary Lapse Of Reason” ou “uma perda curta de consciência”, em tradução livre.

O Pink Floyd esfacelado, sem a figura de Waters e dominado por Gilmour é frágil e infinitamente menos brilhante do que era em conjunto. Separados, tanto Gilmour quanto Waters jamais conseguiram alcançar um décimo do que conseguiram trabalhando juntos. Seja no Pink Floyd (e o próximo e muito melhor “The Division Bell”) seja nas carreiras solo de ambos. Nenhum jamais encontrou o rumo: e ficou provado que, assim como várias outras bandas da época (Sabbath, Zeppelin, etc), há uma magia, um elemento além que une todos eles e faz com que, juntos, sejam o que são. O óbvio ululante, claro.

“Rattle That Lock” está longe de “On A Island”, o disco solo anterior de Gilmour, de 2006. Mas ainda é um álbum bem decente, digno da sua discografia (melhor que o primeiro, de 78 e o segundo, “About Face”, de 84), acima, até, do esperado. No entanto, se considerarmos que são SETE MÚSICAS do disco novo executadas, sim, enfraquece o set-list, nem todas merecem a honraria (três estaria de ótimo tamanho), prejudica o conjunto, esfria o público.

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As escolhas da carreira do Pink Floyd, no entanto, são boas. Além das já citadas, como as inevitáveis “Money” e “Time”, Gilmour manda também “Us And Them”, do Dark Side e “Fat Old Sun” numa versão espetacular, transformando a balada central de “Atom Heart Mother” (1970) em algo maior do que já é. O Pink Floyd pastoral e psicodélico de uma música lançada 45 anos atrás. O tributo já presente em “P.U.L.S.E” de 1994 com “Astronomy Domine”, a única de “The Piper At The Gates Of Dawn” (o disco de estreia e de quando ele ainda não fazia parte da banda), “High Hopes” e “Sorrow”, os dois colossos dos discos do Floyd capitaneados por ele, “Run Like Hell”, uma das únicas três músicas de “The Wall” escritas por ele em parceria com Waters. A banda também ajuda: Phil Manzanera (guitarra, ex-Roxy Music), Guy Pratt (baixo) e Jon Carin (teclados) tocam com Gilmour há muitos e muitos anos. João Mello, o saxofonista brasileiro que entrou pro time em agosto, não compromete e até manda muitíssimo bem, diga-se.

No palco, Gilmour é frio, claro. “Tímido”, como ele diz. Não faz questão de interagir salvo os protocolares “obrigado” e “estou feliz por estar aqui”. Mas, no palco, se dá ao direito de improvisar e estender alguns solos. Em entregar performances absolutamente brilhantes e únicas. Em especial de “Comfortably Numb”, a última música do show. O melhor solo da história do rock. E o melhor solo porquê mostra uma característica forte do Pink Floyd, ao contrário da maioria dos seus colegas de progressivo, que nunca foi o exibicionismo técnico. Mas a técnica com sentido, dentro de uma música icônica, uma letra muitíssimo acima da média, inserida de maneira perfeita em uma canção que não se resume ao solo, como a maioria das que normalmente ocupam os primeiros lugares de votações do tipo da mídia especializada.

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“Comfortably Numb” é o canto de cisne de David Gilmour enquanto minimamente Pink Floyd com Waters. É o último testamento do seu ápice criativo. E, no show, Gilmour abusa. Entrega um solo além do que já é e estamos acostumados. Deixa o público confortável (e incomodamente) anestesiado. Se tem um breve momento em que ele se permite quebrar o protocolo, talvez seja esse: o momento final. Se por um momento ele foge do roteiro, mesmo que tenha seus momentos de catarse e improviso aqui e acolá, é este. Gilmour é desses monstros raros, talvez o primeiro e último da sua espécie. Alguém que você reconhece desde o primeiro acorde.

Um dos grandes responsáveis por tornar uma banda de rock progressivo em um fenômeno mundial. Ninguém nunca tocou guitarra como Gilmour, compôs como ele e, claro, participou dos processos criativos e das brigas (por ego, por birra, por genialidade excessiva, por aquilo que você quiser) no Pink Floyd.

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Syd Barrett está morto. Richard Wright também. O último suspiro do Pink Floyd original foi no “Live 8” em Londres, 2005. “The Endless River”, de 2014, que eu até evitei escrever, é um belo tributo de Gilmour para Wright. Eventualmente, os fãs podem ter momentos de surpresa como a participação de Gilmour no próprio solo de “Comfortably Numb” em um show de Waters em 2011.

A história do Pink Floyd (recomendo muito a autobiografia do baterista, Nick Mason, “Inside Out”) é uma grande odisséia da música como a conhecemos. Incompreensível para os meros mortais. As coisas como elas são. Dessas confluências que acontecem de maneira tão rara quanto possível. Nada nunca será igual depois que todos eles morrerem ou se aposentarem. David Gilmour é alguém que trabalha fora da rotação normal da indústria musical, especialmente em 2015 e depois de tudo que viveu. Já poderia ter largado essa brincadeira tão séria faz tempo. Mas ele gosta de estar ali, no palco. É visível que Gilmour gosta do que faz e não passa imune. David Gilmour é desses seres raros que vão desaparecer muito antes do que pudermos nos dar conta.

David Gilmour Setlist Allianz Parque, São Paulo, Brazil 2015, Rattle That Lock

PS:

Gilmour divide o set-list entre uns 60% Pink Floyd e 40% carreira solo. Com uma carreira que atravessa 6 décadas…muita coisa boa fica de fora. Escolhi algumas que ficaram de fora e que formariam um show INACREDITÁVEL, dando uma geral na carreira do Floyd considerando músicas que tiveram sua participação.

Dogs (Animals, Pink Floyd, 1977)
A Saucerful Of Secrets (idem, Pink Floyd, 1968)
Echoes (Meddle, Pink Floyd, 1971)
The Narrow Way (Parts 1-3) (Ummagumma, Pink Floyd, 1969)
The Nile Song (More, Pink Floyd, 1969)
Mother (The Wall, Pink Floyd, 1979)
Castellorizon (On A Island, solo, 2006)
Hey You (The Wall, Pink Floyd, 1979)
Short and Sweet (David Gilmour, solo, 1978)
Young Lust (The Wall, Pink Floyd, 1979)
Red Sky at Night (On A Island, solo, 2006)
Welcome To The Machine (Wish You Were Here, Pink Floyd, 1975)
Fearless (Meddle, Pink Floyd, 1971)
Coming Back To Life (The Division Bell, Pink Floyd, 1994)
Wot’s… Uh the Deal? (Obscured By Clouds, Pink Floyd, 1972)
Let There Be More Light (A Saucerful Of Secrets, Pink Floyd, 1968)
Careful with That Axe, Eugene (Ummagumma, Pink Floyd, 1969)
A Great Day for Freedom (The Division Bell, Pink Floyd, 1994)
On the Turning Away (A Momentary Lapse Of Reason, Pink Floyd, 1987)
Smile (On A Island, solo, 2006)
Blue Light (About Face, solo, 1984)
A Pocketful of Stones (On A Island, solo, 2006)
Wearing the Inside Out (The Division Bell, Pink Floyd, 1994)
Learning To Fly (A Momentary Lapse Of Reason, Pink Floyd, 1987)
Louder than Words (The Endless River, Pink Floyd, 2014)

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Jornalista investigativo, crítico e escritor. Publico sobre música e cultura desde 2003. Fundei a Movin' Up em 2008. Escrevi 3 livros de contos, crônicas e poemas. Venci o Prêmio de Excelência Jornalística (2019) da Sociedade Interamericana de Imprensa na categoria “Opinião” com ensaio sobre Roger Waters e o "duplipensar brasileiro" na Movin' Up.

Published in Destaques Reviews de Shows